Literatura

Aparentemente imperturbável

19 janeiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
gravura de Frans Everbag

gravura de Frans Everbag

Muito continua sendo comentando sobre a boa curadoria editorial da recentemente fundada Rádio Londres. Um dos títulos da editora que tem chamado a atenção de críticos e leitores é Tirza, do holandês Arnon Grunberg, ultimamente clamado como o romance holandês quiçá mais importante de todos os tempos.

Trata-se da história da família Hofmeester: Jörgen Hofmeester vive com sua filha caçula, Tirza, em Amsterdam, em uma área nobre da cidade. A filha mais velha, Ibi, vive na França e a mãe abandonara a família alguns anos antes. Tirza prepara-se para sair de casa, rumo a uma grande viagem pela África, que coroará o término do colégio, antes da entrada na faculdade. Jörgen, então, prestes a ficar longe de Tirza, filha que é sua “rainha do sol”, vê-se frente à realidade de encontrar-se sozinho no final da vida. Pouco antes da viagem, a mãe retorna ao lar de maneira inusitada, como se nada houvesse acontecido; encara seu desgarramento em termos de laços maternais como uma característica pessoal, a ela inerente, portanto, perfeitamente natural. Jörgen, perfeccionista e altamente controlador, preocupado com a manutenção de uma perfeita ordem, aceita o retorno da esposa, apesar dela causar-lhe repulsa, em prol da organização do lar aos moldes familiares canônicos, enquanto vê-se às voltas com os preparativos para a festa de formatura da filha querida. Sua preocupação em agradar, como notou a crítica Lua Limaverde, “é tão doentia que ele é extremamente diplomático com quem mais odeia e o fere. No entanto, quanto mais ele tenta ser amável, menos as pessoas gostam dele. A festa de Tirza é quase uma alegoria da sua própria vida, a tentativa de fazer tudo da maneira mais perfeita e apresentável e no entanto falhar de todas as maneiras, pois sua verdade não está representada naquela casa luxuosa, mas no seu quartinho de ferramentas, o lugar para onde vai apenas quem quer se esconder da festa”.

A prosa de Grunberg é habilidosa em delinear as motivações psicológicas, as relações sociais, o oculto histórico, desvendando-os de maneira precisa. Um exemplo, acerca da dita festa, é o aspecto da relevância que a opinião alheia tem para Jörgen Hofmeester, parte estrutural do caráter de seu detalhismo um pouco doentio: “Esta festa tem de ser perfeita, é preciso provar que os boatos que circulam sobre ele não são verdadeiros. O quanto é bem-sucedido, é isso o que quer dizer, é isso que quer mostrar a todos, o quanto foi bem-sucedido na vida, o quanto suas filhas são bem-sucedidas”; em outro momento, lê-se também sua opinião exposta de maneira mais direta: “Afinal, a gente é o que as pessoas pensam da gente”. Seu mote de vida é a “eterna necessidade de parecer civilizado sob qualquer circunstância”. Outra face da mesma questão é a própria relação de cuidado excessivo que despende a Tirza, pois, diz o narrador, para o personagem, “quando ficou claro que não poderia se destacar em nada, optou pela paternidade”.

Vê-se ainda melhor o personagem no seguinte trecho:

“Os convidados vêm mais tarde do que Hofmeester esperava. Já são sete e meia, e ainda não chegou ninguém. Por isso, come a primeira porção de sardinhas fritas. Na verdade, ele pretendia começar a fritá-las mais tarde, mas não conseguiu resistir. Já comeu três. Com espinhas e tudo. No entanto, mal se notavam as nespinhas, pois são peixinhos bem pequenos. Ele vai até o quarto de Tirza para oferecer as sardinhas que acabou de fritar. Ela está usando um vestido preto que tem há anos em seu armário, e não aquele que compraram juntos para essa festa. Um vestido de trezentos euros, com sapatos do mesmo valor que combinavam. Hofmeester deve ter demonstrado sua decepção, porque a filha colocou um braço em volta dele e disse: ‘Vou usá-lo em outra ocasião, pai, mas não hoje à noite. Não está combinando comigo neste momento. Não estou no clima. Simplesmente não é o vestido que tem a ver com esta noite’. O pai sorri condescendente, com o prato de sardinhas na mão. ‘Mas nós o compramos para esta noite, Tirza, especialmente para sua festa’, queria ter dito. Mas não disse nada. Suas decepções são problema seu. Devem permanecer invisíveis ao mundo. Quando Tirza se vira, seu pai ainda sorri, aparentemente imperturbável. ‘Tudo cai bem em você’, diz ele e, em seguida, deixa a filha só.”

Para Carlos Henrique Schroeder, em resenha publicada no Diário Catarinense, é “certamente o grande lançamento de literatura estrangeira do ano passado. É quase impossível largar as 460 páginas deste brilhante e sombrio romance”. Schroeder comenta que é “impressionante como o autor conseguiu retratar as esperanças e paranoias contemporâneas de uma família de uma família de classe média a partir das neuroses do patriarca , sem cair no lugar-comum ou ficar naquele eixo cansado ‘classe-média-sofre’ de um Jonathan Frazer”. Para ele, trata-se de “um clássico contemporâneo”.

Segundo a crítica literária Camila von Holdefer, em resenha publicada no blog do IMS, há um ponto chave do romance que o liga à atemporal concepção literária do conflito de gerações delineada pelo russo Turguêniev – ironicamente, pois Jörgen Hofmeester é editor de livros, elenca em seus diálogos e pensamentos alguns autores russos, sobretudo Tolstói, a quem admira profundamente, sem, no entanto, penetrar-lhes os sentidos mais profundos; diz a crítica: “É curioso como Hofmeester encarna caraterísticas das duas gerações de personagens de Pais e filhos, o clássico de Ivan Turguêniev que difundiu o conceito de ‘niilismo’. Como Bazárov e Arkádi, os mais jovens, ele se diz um niilista — ainda que a definição tenha mudado um tantinho de lá para cá. A exemplo de Nikolai e Pável, por outro lado, os irmãos da geração mais velha, ele acredita ser uma ‘carta fora do baralho’. Num dado momento, Hofmeester sente uma ‘tristeza calma, leve’, similar à que Nikolai Petróvitch experimenta no jardim de sua propriedade quando se dá conta de que os melhores momentos de sua vida ficaram para trás. Hofmeester se parece com a dupla mais experiente de Turguêniev também no desejo de transmitir um conhecimento do qual as filhas desdenham. ‘Descobre-se que tudo não passa de tolice, que as pessoas capazes não estudam mais essas ninharias e que você, pelo que dizem, é um palerma ultrapassado’, diz Nikolai Petróvitch (em tradução de Rubens Figueiredo), mas bem poderia ser Jörgen Hofmeester. A oscilação do protagonista de Tirza é uma boa resposta a um mundo que ficou ainda mais complexo depois da publicação de Pais e filhos em 1862. Hofmeester, por exemplo, acredita que liberdade é dinheiro, ‘e se o dinheiro não pode comprar a liberdade, é simplesmente porque não é dinheiro suficiente’. Naquilo em que ele vê liberdade, Tirza e Ibi ‘enxergam uma conspiração capitalista’”.

O livro foi publicado no Brasil no ano passado, com tradução de Mariângela Guimarães.

A Rádio Londres aposta em ouros autores holandeses. Entre eles, publicou o segundo e mais premiado livro de John Williams, Butcher’s Crossing, e adquiriu os direitos de publicação para o romance de estreia de Atticus Lish, Preparation for the Next Life – que angariou alguns dos mais importantes prêmios literários americanos do ano passado –, e o drama Réparer les Vivants, da escritora francesa Maylis de Kerangal, sucesso tanto de vendas em meio ao grande público, quanto da crítica especializada vinculada aos prêmios literários.

Em 2016 a Holanda será o país homenageado na Feira de Frankfurt. No Brasil, será realizado o Café Amsterdã, evento literário em que autores holandeses são levados para falar sobre seus livros, fazer oficinas e discutir literatura junto a escritores dos países visitados; após ter acontecido na China, Itália, Espanha, Alemanha, Argentina, República Checa e França, o evento chega ao Brasil. Em São Paulo, ocorrerá entre 26 a 29 de agosto, na Casa das Rosas; no Rio de Janeiro, de 1º a 3 de setembro, na Biblioteca Parque. Oito escritores virão da Holanda, entre os quais, Arnon Grunberg. Também virá Toine Heijmans, jornalista, figura recentemente presente na lista dos mais vendidos em Amsterdã com seu No mar, no Brasil publicado pela Cosac Naify.

 

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“Jörgen Hofmeester tinha uma vida perfeita: uma esposa atraente, uma casa com jardim em um bairro nobre de Amsterdã, uma carreira prestigiosa como editor de livros de ficção estrangeira, duas filhas lindas, Ibi e Tirza, e uma conta-corrente na Suíça. Uma vida burguesa, sossegada, que acaba sendo subvertida por uma série de eventos dramáticos: Ibi, pouco mais que uma menina, é flagrada em situação constrangedora com o inquilino de Jörgen e, depois desse episódio, resolve ir embora para sempre da casa do pai; a esposa de Hofmeester abandona a família em busca de ‘autorrealização’; a editora, em decisão unilateral, o aposenta antecipadamente; Tirza, a caçula e filha predileta, objeto da obsessão paterna, quando conclui os estudos, parte para uma longa viagem pela África com o namorado marroquino, que guarda inquietante semelhança com Mohammed Atta. A narrativa começa com Hofmeester preparando meticulosamente sushis para a festa de formatura e despedida de Tirza. Por trás do aparente autocontrole de Hofmeester e de seu desprezo por qualquer emoção, há uma violência reprimida, uma tensão constante, uma ameaça invisível, elementos que dominarão a trajetória do protagonista até o imprevisto e desconcertante final. Tirza é, ao mesmo tempo, um romance assustador e fascinante, divertido e sinistro, a história de um homem em desesperada, embora inútil, busca por salvação”.

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tirza

 

 

TIRZA

Autor: Arnon Grunberg
Editora: Rádio Londres
Preço: R$ 53,50 (460 págs.)

 

 

 

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