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O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos

12 setembro, 2016 | Por Roberta Paschoalinoto

Pintura do artista equatoriano Eduardo Kingman

Escrito pelo político e economista equatoriano Alberto Acosta, O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos desenvolve uma proposta alternativa ao capitalismo e suas lógicas de devastação socioambiental. Em 264 páginas, Acosta nos convida a pensar sociedades verdadeiramente solidárias e sustentáveis calcadas no Bem Viver – um conceito oriundo da sabedoria indígena sul-americana, mas que encontra correspondências em outros povos ao redor do mundo. Seu fundamento é a convivência harmoniosa entre os seres humanos e deles com a Natureza. Trata-se de uma filosofia em construção que projeta um novo ordenamento social, econômico e político a partir da ruptura radical com as noções de desenvolvimento, pautadas pela acumulação de capital e pela superexploração de recursos naturais. A complexidade do Bem Viver é articulada didaticamente ao longo do livro, fazendo resistência a tudo que coloca em risco a sobrevivência dos seres na Terra.

Alberto Acosta é um dos fundadores da Alianza País, partido que chegou à Presidência do Equador em 2007 após a vitória eleitoral de Rafael Correa. Foi ministro de Energia e Minas no primeiro ano de mandato, mas deixou o cargo para dirigir a Assembleia Constituinte de Montecristi. Trata-se do evento que culminou na Constituição equatoriana de 2008 – o primeiro escrito constitucional a reconhecer os conceitos de Plurinacionalidade, Direitos da Natureza e Bem Viver. Acosta, contudo, distanciou-se do presidente equatoriano e seu partido ao perceber incoerências no mandato em relação ao novo texto constitucional. E O Bem Viver, um compilado de textos resultantes do debate constituinte, é publicado no Equador em 2011 como defesa dos ideais expressos na nova Constituição.

Com efeito, o livro faz oposição radical ao progresso e ao desenvolvimento. É com muitas referências a pensadores clássicos e contemporâneos que Alberto Acosta perpassa a história política e econômica para desmistificar os conceitos. Quando Harry Truman, em 20 de janeiro de 1949, definiu a maior parte do mundo como “áreas subdesenvolvidas”, deu-se cabo à difusão do modelo de sociedade norte-americano e estabeleceu-se uma estrutura mundial de dominação dicotômica do desenvolvido-subdesenvolvido. A vida econômica dos países periféricos passou a ser vista como primitiva a partir dos avanços científicos e do progresso industrial. A modernização dos povos, Acosta nos conta, desembocou na negação das raízes históricas e culturais dos povos que passaram a imitar os países centrais. No entanto, a grande maioria deles não conseguiu e nem conseguirá alcançar seus modelos.

É nesse sentido que o texto faz resistência aos governos progressistas latino-americanos que chegaram ao poder no início do século 21. Seus projetos desenvolvimentistas aprofundaram a dependência econômica de recursos naturais, com exportações crescentes de matéria-prima, muitas vezes às custas dos direitos dos povos tradicionais. Apesar dos avanços sociais, não promoveram mudanças estruturais: repetiram formas de produtivismo e consumismo capitalista que nos conduzem a um suicídio coletivo. O desenvolvimentismo é tido, portanto, como a raiz da crise global que nos afoga em um pântano político, social, econômico, ecológico e ético. No Brasil, o crime ecossocial no Vale do Rio Doce, em novembro de 2015, é apenas uma das advertências gritantes da derrocada capitalista.

Daí a importância da edição brasileira publicada pela Editora Autonomia Literária e pela Editora Elefante em 2016. O livro é, pois, um excelente veículo de divulgação do Bem Viver: visa todo tipo de leitor e é tentativa de desconstrução das ideologias dominantes. Com linguagem simples, Acosta desenha o conceito que dá nome ao livro sempre em contraste com o que ele não deve ser. Seu objetivo é evitar que o Bem Viver se torne mais um “sobrenome” do desenvolvimento, tal qual “desenvolvimento humano”, “desenvolvimento sustentável” ou “capitalismo verde”. Ou seja, recusa-se qualquer prática ligada às reformas de mercado de inspiração neoliberal. O Bem Viver, nesse sentido, não deve ser visto como uma modalidade mais eficiente do sistema de acumulação material. Ao contrário, é fuga da incontrolável competitividade e do tresloucado consumismo.

O fato é que Acosta recusa qualquer receituário. Somos apresentados a algumas práticas próprias das comunidades indígenas, mas apenas como provas de que há outras lógicas econômicas – como a solidariedade e a reciprocidade, por exemplo. “Nem todos os atores da economia agem movidos pelo lucro” (p.186), diz Acosta. Seu intuito é abrir portas para o debate e para a participação ativa da população na construção de outra realidade, pois o projeto coletivo futuro deve vir – não de um indivíduo – mas do acordo entre todos. Assim, o Bem Viver é tido como um conceito aberto e plural que só pode ser consolidado em um mundo pensado e construído democraticamente. A ideia não sintetiza nenhuma proposta totalmente elaborada, menos ainda indiscutível. Nessa leitura, urge a criação de espaços comunitários para o exercício da criatividade e do pensamento crítico. Neles, as pessoas retomariam o controle de suas vidas participando do processo de tomada de decisões.

Apesar de ser um conceito aberto, o Bem Viver se firma na vida em comunidade, no consumo consciente e nas relações de produção renováveis, sustentáveis e autossuficientes. São práticas que aspiram o bem-estar das coletividades e não aceitam a existência de grupos privilegiados às custas do sacrifício de outros. Ou seja, tal filosofia procura frear a depredação da Natureza, a devastação de comunidades e a estrutura trabalhista exploradora de mão de obra. A fim de transitar para o pós-extrativismo e pós-capitalismo, diz Acosta, torna-se imprescindível repensar as necessidades humanas fundamentais para redefinirmos coletivamente os padrões culturais. O texto questiona os estilos de vida vigentes, especialmente entre as elites, pois se encontram em um processo de acumulação de bens que gera desigualdade e devastação. Por conseguinte, emergem propostas urgentes como, por exemplo, a redistribuição de renda e riqueza, e a redução da dependência do petróleo e da mineração tanto como fonte de energia quanto de materiais.

Alberto também sugere o autocentramento. Tal estratégia de organização visa, por exemplo, “recuperar a produção camponesa proveniente de cada localidade para consumi-la localmente” (p.167). A participação na economia mundial não seria descartada, mas mercados comunitários teriam prioridade – vinculando rural e urbano – para predominar o “viver com o nosso para os nossos”. Segundo Acosta, a autodependência comunitária superaria o consumismo e o produtivismo, permitindo que os povos deixem seu papel passivo no uso de bens e serviços como saúde, educação e transporte. E mais: o uso de novos padrões tecnológicos poderiam facilitar a produção e o consumo de produtos locais, artesanais e orgânicos resultando no empoderamento das sociedades sobre suas economias.

Desse modo, é necessária a construção de um Estado plurinacional, isto é, de uma nação que assuma nacionalidades diversas e seja construída com a participação de todos os cidadãos. A plurinacionalidade é exercício de democracia inclusiva que não dissolve os Estados, mas exige espaços de autogoverno e autodeterminação propiciando as autonomias territoriais dos povos. Em outras palavras, busca-se repensar o Estado a partir da pluralidade de visões étnicas e culturais. Não se trata apenas de reconhecer passivamente a diversidade de grupos até então marginalizados, mas incorporar perspectivas distintas de sociedades. Tal integração construiria instituições distintas capazes de superar a marginalização exploradora de diversos grupos, bem como as diversas formas de discriminação. No caso do Equador e da Bolívia, o Estado plurinacional começou a forjar-se nos anos 1990 como processo político vinculado a reivindicações indígenas de identidade, territórios e água.

Um dos pontos fulcrais do livro é a reinterpretação social da Natureza. Acosta nos explica como o mundo ocidental, com suas concepções antropocêntricas, se posicionou figurativamente fora dela. E, a partir da sabedoria ameríndia, ele passa a articular uma racionalidade em que a relação entre todos os seres, animados ou inanimados, é encarada como uma relação social. Isso implica em conceder direitos à Natureza para proteger a manutenção dos sistemas de vida. A ideia é que tudo o que fazemos pela Natureza, fazemos em prol de nós mesmos. “Se queremos que a capacidade de absorção e resiliência da Terra não entre em colapso, devemos deixar de enxergar os recursos naturais como uma condição para o crescimento econômico ou como simples objeto das políticas de desenvolvimento” (p.104). Dessa maneira, Alberto propõe a desmercantilização dos recursos naturais e uma economia submetida à ecologia, isto é, que recuse a megamineração, os monocultivos e os transgênicos. Para ele, é a revisão do conceito Natureza que nos permitirá buscar respostas para os impasses da humanidade.

Ao discutir o uso de recursos naturais em países sul-americanos, o texto nos mostra as origens de uma postura submissa no contexto internacional e como ela tem se mantido profundamente enraizada nessas sociedades. Contudo, há resistência: proliferam-se vozes contra o crescimento econômico sobretudo nos países industrializados. Alguns pensadores, como Enrique Leff e Manfred Max-Neef, recomendam o decrescimento econômico no Norte Global conciliado ao pós-extrativismo no Sul. O Equador, por sua vez, tentou dar um primeiro passo para uma transição pós-petrolífera com o Projeto Yasuní-ITT a partir de 2007. Acosta nos conta os altos e baixos dessa iniciativa que lutou para suspender a exploração de petróleo em plena Amazônia a fim de proteger o território, sua biodiversidade, o clima global e a vida dos povos indígenas em isolamento voluntário. Apesar do fracasso governamental e da insensibilidade das nações mais poderosas para o Yasuní-ITT, a luta proporcionou ao tema relevância nacional e internacional, projetando-se como um exemplo de imenso potencial transformador.

Assim sendo, o Bem Viver é um compromisso com a vida. Reconhecemos o esforço do autor equatoriano para desconstruir o paradigma do desenvolvimento a fim de esclarecer seus leitores a respeito da crise global e da urgente necessidade de se buscar novos caminhos. Com efeito, Alberto Acosta nos convence que é possível imaginarmos outros mundos e esse é o ponto forte do texto. O livro é bastante didático e se constitui um extraordinário veículo das ideias do Bem Viver, que se revela uma saída para os impasses da humanidade e um farol emancipador especialmente para os países sul-americanos. Ao se colocar como conceito aberto, essa filosofia é desenhada com sensatez ao evitar qualquer visão dogmática respeitando as diversidades. É fundamental esquivar-se de qualquer noção simplista que o trate como uma mera idealização de paraíso harmonioso. O Bem Viver é uma realidade em diferentes regiões do mundo e, por isso, não significa que o capitalismo deva ser totalmente superado para que, só depois, consolide-se a mudança. A transição, de fato, não será de curto prazo.

 

 

 

O BEM VIVER – UMA OPORTUNIDADE PARA IMAGINAR OUTROS MUNDOS

Autor: Alberto Acosta
Editoras: Elefante e Autonomia literária [co-edição]
Preço: R$ 35,00 (264 págs.)

 

 

 

 

 

* Roberta Paschoalinoto é graduanda em Letras pela FFLCH-USP.

 

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