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O homem sem doença

28 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Após o banho, senta-se no chão de pernas cruzadas, diante da janela, para olhar a vista da cidade. Já não sabe se deve estar satisfeito ou insatisfeito, se deve estar feliz ou se abandonar ao pressentimento de tristeza que se situa em algum ponto de seu íntimo. Como quando se sente uma forte vontade de fazer xixi, mas não sai nada: tal é a sua tristeza.”

gravura de Paul Klee [água-tinta]

O aclamado escritor holandês Arnon Grunberg encerrou neste domingo o ciclo de encontros e conversas com o público que realizou em São Paulo e Santos para o lançamento de O homem sem doença, agora publicado no Brasil pela editora Rádio Londres, com tradução de Mariângela Guimarães.

O romance é um impiedoso ato de acusação contra o idealismo e a hipocrisia do Ocidente. Característica comum nos romances de Arnon Grunberg, a um só tempo diverte e choca o leitor.

Como bem disse o escritor e crítico Carlos Schroeder, em sua coluna de literatura no jornal Diário Catarinense: O homem sem doença é uma crítica ao mesmo tempo trágica e cômica à época em que vivemos, com profundas reflexões sobre justiça, humilhação, falso senso de segurança e os excessos da arquitetura moderna. Mais um grande livro deste autor contundente e indispensável”.

A narrativa acompanha a perturbadora sina de Samarendra Ambani, um proeminente arquiteto suíço, de origem indiana, jovem e idealista. Ao participar de um concurso para a construção de um teatro de ópera em Bagdá, Samarendra é selecionado e convidado para ir ao Iraque: eis que sua vida perfeita entra em colapso. A viagem, iniciada em clima de ingênuo otimismo, não tarda a transformar-se em uma experiência kafkiana: durante sua estadia, Samarendra é preso e torturado, sob a absurda acusação de ser espião. Ao voltar para Zurique, tenta voltar à normalidade de sua vida; porém, pouco tempo depois, ele decide viajar para Dubai, pois aceita acompanhar o projeto de construção de uma grandiosa biblioteca. E a história, inexoravelmente, se repete.

De acordo com Guilherme Sobota, em matéria sobre o livro publicada no jornal O Estado de São Paulo, há uma coincidência que não deve ser fortuita: “Em 1957, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright apresentou um projeto para construir a primeira casa de ópera de Bagdá, capital do Iraque. Ele fez uma extensa pesquisa cultural e projetou a estrutura que você vê no desenho ao lado. A missão – não concluída por Wright na vida real – agora retorna na ficção do escritor holandês Arnon Grunberg. […] O paralelo com Wright não aparece no livro de maneira explícita, mas é difícil pensar que alguma coisa seja coincidência na escrita obsessiva do escritor holandês”. Sobota conta que o autor disse, através de troca de e-mails, que o livro despertou seu interesse por arquitetura: “A pesquisa frequentemente se torna mais do que apenas pesquisa. Para mim, o personagem principal desse romance deveria ser um jovem arquiteto, e o que eu sabia sobre arquitetura?”. Grunberg disse ainda que esteve no Oriente Médio várias vezes nos últimos anos: “o jornalismo literário, que eu comecei a fazer em 2006, ajudou a refrescar minha imaginação”, ele diz, e, na matéria, Sobota indica que várias de suas reportagens estão disponíveis, em inglês, no site pessoal do autor, arnongrunberg.com. Ainda na mesma matéria, questionado sobre as inevitáveis relações com os trabalhos de Franz Kafka, Grunberg disse ser, de fato, a escrita do checo, importante para ele, ainda que estabeleça entre ambos uma diferença fundamental: “Kafka era também um escritor de parábolas, ele era místico, enquanto que O Homem Sem Doença é realista. A parábola se torna realidade”.

O autor, que tem sido vastamente entrevistado e colocado em contato direto com o público, disse, em artigo publicado pela revista piauí, que inevitavelmente perguntam-lhe: “Qual foi o momento exato em que você começou a escrever?”. É muito interessante sua resposta, a que se dedica ao longo de todo o artigo, bem à sua moda, cômica mas perturbadora e reflexiva. “Como se fosse possível determinar data e hora, como se faz com o primeiro cigarro ou a perda da virgindade. E quem pergunta em geral assume uma expressão de quem espera uma resposta escrupulosamente detalhada: ‘Foi no dia 20 de setembro de 1986, logo depois do jantar.’ Mas será que uma redação feita em sala de aula, ainda que com pouco entusiasmo, não pode ser considerada a estreia da atividade da escrita? Ou uma canhestra carta de amor? Ou mesmo os versos escritos para as bodas de prata de um tio?” – ele diz; a seguir começa a contar sua história, perguntando-se quando começara a escrever, pois, em sua juventude e época de escolha profissional, abandonara os estudos para tentar tornar-se ator. Frustrado com a carreira de ator, começou a fazer aulas de ballet clássico, através das quais conheceu uma moça: “Ewa Mehl me recebeu dizendo: ‘E aí, você quer ser ator?’ ‘Bem’, respondi, ‘para dizer a verdade, nem disso eu tenho mais tanta certeza.’ ‘Então, o que você quer ser?’ Seguiu-se um breve silêncio. ‘O que você faz?’, ela quis saber. Respondi que trabalhava como auxiliar administrativo. A próxima pergunta – se eu pretendia continuar a trabalhar como auxiliar administrativo pelo resto da vida – não foi difícil de responder. ‘Eu também escrevo’, disse. E não era uma completa mentira. Eu havia escrito umas peças, mais precisamente textos de um ato, movido pela esperança de que eles impulsionassem minha carreira de ator, menos de que me lançassem como dramaturgo. […] Quanto ao resto, eu escrevia cartas. Endereçadas a garçonetes e vendedoras que despertavam meu desejo. Acreditava que a escrita poderia ter o efeito que meu corpo não lograva produzir: a sedução. Que uma carta pudesse compensar a falta de musicalidade do corpo, desviando toda a atenção para a musicalidade da linguagem. Minha confiança na palavra escrita, nesse tempo, devia beirar a loucura. Sobretudo porque eu não me limitava a uma carta só, mesmo que a única resposta a ela fosse o silêncio: não, eu continuava a escrever. […] Mas não disse nada disso a Ewa Mehl. Só respondi: ‘Eu também escrevo.’ Ao que ela retrucou: ‘Então me mostre algum texto seu.’ A primeira pessoa a levar a sério o que eu escrevia e a exercer alguma crítica dos meus textos foi uma imigrante polonesa em Amsterdã cujo holandês era bastante precário. E suas críticas eram bastante severas. ‘Escreva sobre gente que você conhece’, ela dizia. ‘Escreva sobre mim, sobre Jolanta, sobre seus pais. Não fale sobre a revolução, porque você não entende porra nenhuma de revolução.’ A partir desse dia, depois de cumprir meus deveres de auxiliar administrativo não especializado, eu pedalava até a quitinete de Ewa Mehl, que me oferecia uma xícara de chá e uma tigela de borscht. E conversávamos sobre arte”.

 

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Trecho

 

Eles estão mascarados. Seis homens mascarados. Sam presume que não sejam oficiais, mas militares normais, se é que existem militares normais neste país.

A maioria deles não fala inglês, mas árabe. Só um, o menor dos seis, de vez em quando dirige a palavra a Sam em inglês. Ele também tem o hábito de chamar Sam de “cachorro”, mas Sam já se acostumou a isso. Seu nome ali é Cachorro. Depois de um tempo sendo chamado assim, não conhece outra forma.

Algumas vezes o baixinho diz:

— Você com certeza pensa que algum dia vai sair daqui.

Não há nem sombra de uma audiência, no sentido usual dessa palavra. Eles ficam em torno dele e continuam falando árabe.

De vez em quando, o baixinho diz num tom que não chega a ser particularmente hostil: “Cachorro”. Como se quisesse dar uma lição a Sam. Mas Sam não sabe que lição deveria aprender ali.

Ele suporta esse tratamento sem raiva porque tem medo demais de que possam bater nele novamente e de não saber como evitar esses golpes. Ou melhor, de não ter como evitá-los. Sua raiva agora é principalmente dirigida contra si mesmo, por ter deixado que a situação chegasse a esse ponto.

O que havia pensado? Que o mundo era uma grande Suíça?

A princípio, havia esperado que os homens lhe trouxessem algo para comer. Como a luz era muito ruim e, inicialmente, só conseguia ver silhuetas, por um instante até achou que um deles fosse um funcionário da embaixada suíça. Pensou ter escutado alemão-suíço, mas, no fim, deu-se conta de que era árabe.

Em vez de lhe darem comida ou água, eles o despem.

O terno que não era dele, a camisa que não era dele, a calça que não era dele, arrancam, tudo à força. Têm de rasgar a camisa porque suas mãos estão atadas às costas. Também os sapatos, que são dele, são tirados às pressas. Não se dão ao trabalho de desamarrar o cadarço.

Contrariá-los os deixaria furiosos. Por isso Sam é solícito enquanto tiram sua roupa.

— Você é americano? — pergunta o baixinho quando Sam já se acha nu diante deles.

— Sou cidadão suíço — diz Sam, e se senta de maneira que sua genitália fique encoberta.

De joelhos, com as pernas bem encostadas. Assim quase não é possível ver suas nádegas, pois alguns dos homens estão atrás dele.

Ele tenta adivinhar de onde virão os golpes, pois considera seriamente que será surrado.

— Vamos fazer com você o que os americanos fizeram conosco — diz o baixinho. Por causa da máscara que ele usa, sua voz soa um tanto distorcida, mas, ainda assim, é bem inteligível.

Sam não faz ideia do que os americanos fizeram com eles, mas diz:

— Eu não sou americano, sou suíço. Vim aqui para a reconstrução. Sou neutro. — Soa cada vez menos convincente, cada vez mais como uma súplica. Afinal, será que eles conhecem a palavra “neutro”? Isso é crucial. Neutro resume bem o que ele é, quem ele quer ser e o que sempre foi. Neutro e adequado, duas palavras que tocam o cerne de sua existência.

— Você não é neutro, cachorro — diz o baixinho. — Você é um espião.

Ele, portanto, ainda não conseguiu convencê-los do contrário.

— Eu sou arquiteto — diz ele.

Nada mais que isso. Mas cada detalhe pode ser explicado de outra forma. Quando se analisa minuciosamente qualquer coisa, cada detalhe se torna dúbio, ambíguo. Uma vez que o campo adverso está convencido de sua vida dupla, torna-se difícil dissuadi-lo dessa ideia.

— Eu projeto edifícios — acrescenta.

Pensa em Aida por um instante. Ele não é também um irmão? E um filho? Um amigo, um amante talvez? Aida precisa ir para os Estados Unidos. Para quem está disposto a pagar, é possível se recuperar lá. Seus pais não tinham entendido isso, não quiseram se convencer de que havia um lugar no qual, pagando, Aida poderia ser curada.

Os homens o empurram para um canto, o que não lhes custa nenhum esforço, pois, assim que ele compreendeu qual era a intenção deles, foi se arrastando até aquele local. Ali não existe nenhuma dignidade; apenas servilismo. E ele está disposto a ser servil. O cliente tem sempre razão e neste lugar eles são os clientes. Esse pensamento parece tornar a situação mais suportável, de qualquer modo, mais clara: os homens são potenciais clientes, ele tem de satisfazê-los.

Eles tiram seus pênis de suas calças.

Sam quer proteger seus olhos, boca, nariz e orelhas, mas, como suas mãos estão atadas às costas, isso é impossível.

Começam a urinar nele, alvejando principalmente seu rosto. Como há homens que miram a mosca no mictório, eles miram seu rosto. Ele é a mosca. No começo ele ainda sente o gosto da urina, o amargor, um eco de vinagre velho, mas logo já não sente mais gosto nenhum. Apenas sente seu cheiro. A urina está por toda parte: em seus olhos, em seu nariz, em sua boca, em suas orelhas.

Um de seus ouvidos fica entupido, como às vezes acontecia quando ia nadar com o pessoal da escola. Quando eles finalmente terminam, escuta o baixinho dizer:

— E amanhã nós voltaremos. Então vamos fazer com você o que eles fizeram conosco.

Ele gostaria de dizer mais uma vez que é neutro e que sempre foi neutro, que só foi até ali para a construção de um teatro de ópera. Um equívoco (talvez o Iraque ainda não esteja pronto para um teatro de ópera — mas quem é ele para determinar se o Iraque está pronto para um teatro de ópera), porém um equívoco que não afetou a ninguém negativamente.

Querem responsabilizá-lo por algo pelo qual não é responsável. Não é o amor, mas a vingança que é cega.

No entanto, ele conta com a força das evidências. Ainda assim não diz nada, não ousa abrir a boca, principalmente por medo de que possa entrar ainda mais urina.

Ouve a porta se fechando. Permanece deitado com os olhos fechados e a boca fechada. Só é obrigado a deixar aberto o nariz.

A sensação é de que ele próprio se tornou urina, um amontoado endurecido de urina, com uma ferida latejante inflamada no meio da cara.

 

[Trecho divulgado pelo Suplemento Pernambuco, em 02 de setembro de 2016]

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O HOMEM SEM DOENÇA

Autor: Arnon Grunberg
Editora: Rádio Londres
Preço: R$ 32,55 (256 págs.)

 

 

 

 

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