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Pallacorda

9 junho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

O romance histórico-ensaístico Morte súbita, do mexicano Álvaro Enrigue, acaba de ser laçado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução, sempre muito cuidadosa, de Sérgio Molina.

O esplêndido romance foi vencedor do espanhol Prêmio Herralde em 2013 e, sua publicação no Brasil, impulsionada pela confirmação da presença do autor na FLIP – a famosa Festa Literária de Paraty.

A história inicia-se em 04 de outubro de 1599, ao meio-dia, em torno de um duelo inusitado, a ser disputado na Piazza Navona, em Roma. Os duelistas, um jovem italiano que transformava a arte pictórica e um poeta espanhol absolutamente genial: trata-se, nada menos, que a disputa de uma partida de pallacorda entre Caravaggio e Quevedo – “pallacorda” era o nome dado ao jogo de tênis na época, em que a bola [em italiano, palla] era feita de pelos e cabelos humanos. 

Ao longo de três sets e seis games, o pintor e o poeta  emblematizam um confronto entre a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica, bem como um embate entre duas maneiras de viver e de fazer arte: Caravaggio, o artista apesar de todas as circunstâncias, com sua sexualidade fluida, flertando com a marginália e o crime, reinventor da pintura para além de seus limites; Quevedo, o nobre cioso de sua honra, abraçado à mais reacionária e hipócrita moral católica, que logo envolveria o mundo em censura e fogueiras, o mestre genial dos sonetos, da homofobia e do antissemitismo. 

Na plateia da partida, uma multidão que inclui Galileu, Maria Madalena e uma geração de papas que iria lançar o mundo em chamas. 

A imaginária partida é fio condutor de uma viagem acronológica no tempo e no espaço. Como em um jogo de tênis, o romance alterna-se entre Caravaggio e Quevedo. Da Itália, a narrativa vai à Inglaterra, onde Thomas Cromwell e Henrique VIII articulam a execução de Ana Bolena e seu algoz, o carrasco francês, transforma seus cabelos lendários em bolas de tênis – aludidas por Shakespeare e Diderot, pertencem atualmente à Biblioteca Pública de Nova York; uma das bolas, inclusive, é usada na suposta partida. Por outro lado, a história de Quevedo conduz ao México e ao martírio do imperador Moctezuma e de seu grande general Cuauhtémoc – e daí, ao princípio de nação construída sobre as ruínas astecas, abrigo das utópicas experiências de um padre que leu a Utopia de Thomas Morus ao pé da letra, amigo e protetor de um gênio da arte plumária indígena, grande apreciador de cogumelos alucinógenos que espalhou suas obras-primas pela Europa e encheu os olhos de quem as soube olhar.

Conforme citado por Guilherme Freitas em resenha publicada pelo jornal O Globo, Álvaro Enrigue diz: Este não é um romance histórico. É um romance com Caravaggio, com Cortés, com Moctezuma, mas não sobre eles. É uma meditação, em chave de ficção, sobre o mundo em que nós vivemos”. Para o autor mexicano, “os habitantes do século XVI enfrentaram desafios parecidos com os nossos. Para eles, com as navegações, a Terra se tornou redonda como uma laranja. Assim como nós, com os aviões e a internet, eles achavam que tinham o mundo na palma da mão”.

Segundo Sergio Augusto, em resenha escrita ao jornal O Estado de São Paulo, “Borges é uma influência notável, assim como Umberto Eco e suas citações derivadas de textos medievais”. Para o crítico, o romance “é uma história do tênis, da Europa que viu nascer a modernidade e expandiu-se a ferro e fogo pelo Novo Mundo, da corrupção, do autoritarismo e das maldades da Igreja Católica e, last but not least, da revolução provocada na pintura por Caravaggio”.

Um detalhe histórico: Caravaggio era boêmio e briguento, tinha fama de maldito. Inúmeras vezes foi acusado de agressões e livrou-se da prisão por amizades influentes. Mas nem seus protetores puderam atenuar-lhe a culpa quando, em 1606, matou um desafeto durante um jogo de pallacorda. Condenado à morte, fugiu para Napoli e, de lá para a Ilha de Malta, visando juntar-se à Ordem dos Cavaleiros de Malta e, assim, conseguir imunidade; chegou a ser realmente nomeado cavaleiro, mas em 1608 seu passado foi revelado e seus companheiros o expulsaram com desonra e o encarceram. Mais uma vez, Caravaggio conseguiu escapar, sob circunstâncias misteriosas, e refugiou-se na Sicília; naquela época, prematuramente, começam a circular os boatos sobre sua morte.

 

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“Fechou os olhos. Suas vértebras, a cartilagem, os tecidos esponjosos de sua traqueia e faringe produziram, ao se separar, o elegante estalo da rolha ao ser liberada de uma garrafa de vinho”.

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MORTE SÚBITA

Autor: Álvaro Enrigue
Editora: Companhia das Letras
Preço : R$ 31,43 (256 págs.)

 

 

 

 

 

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