Guia de Leitura

Filósofos e literatos que pontuam Mallarmé como o principal marco de ruptura com a poesia pregressa

26 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Mallarmé como fundamental instaurador de questões contemporâneas que ultrapassam a forma poética.

 

Stéphane Mallarmé (1842-1898) inaugurou questões e possibilidades para a poesia, tão profundas, que ainda não plenamente decifradas pela crítica literária contemporânea. Precursor da poesia concreta, influência decisiva para os poetas futuristas e dadaístas, Mallarmé é, sobretudo, conhecido como um escritor cuja prosa e poesia primam pela musicalidade e experimentação gramatical.

 

Sartre, “Mallarmé”

Sartre, no livro Mallarmé – sem tradução para o português –, analisa que o poeta, em sua obra, nega o homem, pois que transforma “o eterno em temporalidade e o infinito em acaso”.

Antes de Camus, Mallarmé teria percebido, segundo o filósofo, que o suicídio é uma questão humana premente, trabalhada, em sua poesia, através do poema crítico, em que a elocução do poeta desaparece em favor da autonomia das palavras.

Mallarmé cria uma articulação sintática inovadora a partir de uma desconexão, um distanciamento, que faz com que as palavras orbitem em torno umas das outras não por uma necessidade semântica, mas por relações analógicas.

De acordo com Sartre, Mallarmé cria uma linguagem em que a palavra se torna coisa. Segundo o filósofo, “le poème est la seule bombe” [“o poema é a única bomba”], frase provinda de uma metáfora-ideia política de Mallarmé. Poemas podem ser bombas, pois exploram e esgotam as relações dos significantes que abarcam.

Octavio Paz, “O arco e a lira”

 

Segundo Octavio Paz, no ensaio “Signos em rotação”, Mallarmé é o maior representante da poesia como fala no seio do silêncio, a procura de um aqui e de um agora. Para o poeta mexicano, “Mallarmé anula o visível por um processo a que chama de transposição e que consiste em tornar imaginário todo objeto real: a imaginação reduz a realidade à ideia.[…] se o mundo é ideia, sua maneira própria de existir não pode ser outra senão a linguagem absoluta […]. Em um segundo momento de sua aventura Mallarmé compreende que nem a ideia nem a palavra são absolutamente reais: a única palavra verdadeira é talvez e a única realidade do mundo se chama probabilidade infinita. A linguagem se torna transparente como o próprio mundo e a transposição, que anula o real em benefício da linguagem, anula também, agora, a palavra”.

De acordo com Paz, o poema “Um coup de dés” – “Um lance de dados” – encerra o período da poesia moderna, caracterizada pelo verso livre e pelo poema em prosa, e inaugura novo período, “que mal começamos a explorar”. Mallarmé “proclama absurda e nula a intenção de fazer do poema o duplo ideal do universo. Por outro lado, Un coup de dés não implica numa renúncia à poesia; ao contrário, Mallarmé nos oferece seu poema nada menos do que como modelo de um gênero novo”. Seu poema concentra a um só tempo o máximo da condensação e da dispersão: simultaneidade temporal e espacial apreendida em poesia. “A negação da negação anula o absurdo e dissolve o acaso. O poema, o ato de lançar os dados ou pronunciar o número que suprimirá o acaso […] é absurdo e não é”. A originalidade do poema repousa, para Paz, no fato de ser um poema crítico, pelo que, justamente, encarna a própria possibilidade de abertura poética ao infinito a cada lançamento de dados: “Poema crítico: se não me engano, a união destas duas palavras contraditórias quer dizer: aquele poema que contém sua própria negação e que faz dessa negação o ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação”. Segundo ele, o “legado a que expressamente se refere Un coup de dês – sem legatário expresso: à quequ’um ambigu – é uma forma; mais ainda, é a própria forma da possibilidade: um poema fechado ao mundo, mas aberto ao espaço sem nome. Um agora em perpétua rotação, um meio-dia noturno – e um aqui deserto. Povoá-lo: tentação do poeta por vir. Nosso legado não é a palavra de Mallarmé e sim o espaço que sua palavra abre”.

 

 

Jacques Rancière, “Mallarmé: The politics of the siren”

Jacques Rancière, em seu livro Mallarmé: A política da sereia – sem tradução para o português, disponível apenas em francês, Mallarmé: La politique de la sirene [1996, Hachette], ou traduzido para o inglês, sob o título Mallarmé: The politics of the siren [2011, Continuum] –, entende que o problema de Mallarmé é tanto político quanto literário.

Segundo Rancière, o nome de Mallarmé costuma ser associado a uma imagem dupla, por um lado próxima ao silêncio e aos espaços infinitos e, por outro lado, a uma obscuridade impenetrável. Para ele, o poeta não é um autor hermético, mas difícil. A “política da sereia”, é sua resposta interpretativa à análise de Blanchot sobre Mallarmé, que o alçaria a uma condição heroica metafísica; Rancière resgata o poeta à condição humana e entende que há, no cerne de sua poética, um programa de manipulação do signo verbal cuja intenção é política e que estrutura sua criação enquanto tradução da crise da modernidade, quer enquanto crise dos ideais sociais, ou crise do verso. “Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard”, para ele, faz da página uma coreografia da ideia.

Em artigo especial publicado no jornal Folha de São Paulo em 1998, Rancière aponta que a poética de Mallarmé acaba com a “oposição entre as solidões congeladas do absoluto e o mundo das atividades profanas. Ela se dedicou constantemente a trazer de volta à terra o absoluto romântico da ideia, a fazer dela o movimento fugitivo de uma aparição e de uma desaparição: voo de cabeleira, batida de leque, frufru de vestido, foguetes de fogos de artifício ou evento de espetáculo de feira. E não se trata de um simples gosto de esteta decadente pelo “quase nada” e pelo “não sei quê”. A poesia de Mallarmé se inscreve no interior de uma preocupação política comum a seu tempo, mas também testemunha uma posição específica no seio dessa preocupação comum”.

 

 

Maurice Blanchot, “O livro por vir”

O poema “Um coup de dés” desenha um círculo hermenêutico que absorve a história e a devolve, como resposta momentaneamente condensada. Por isso engendra sua própria leitura, como primeiro o interpretou Maurice Blanchot, em O livro por vir, no qual mostra que o poema contém suas sucessivas interpretações e que nenhuma delas é definitiva: “Tout pensée émet um coup de dés” – disparo do talvez na direção do infinito. Segundo Blanchot, Un coup de dés “é o livro por vir”. Ele resguarda o movimento constante de fim e começo, distância narrativa entrevista pelo canto das Sereias da Odisseia, tempo circular e movediço desdobrado por Proust. Vence o acaso ao mesmo tempo que o canta: “O acaso será vencido pelo livro se a linguagem, indo até o extremo de seu poder, atacando a substância concreta das realidades articulares, não deixar mais aparente senão o ‘conjunto das relações existentes em tudo’. A poesia se torna então o que seria a música, se reduzida à sua essência silenciosa: um andamento e um desdobramento de puras relações, isto é, mobilidade pura”. 

O acaso silencia as regras, põe em dúvida a ideia de plano e reverte o tempo, abrindo uma súbita lacuna no presente: parodia a origem e a finalidade, esquarteja a noção linear de tempo rumo a um fim. Pela abertura a um tempo vazio, que destrói o passado e o presente como agentes do futuro: o tempo torna-se circular. O acaso, portanto, ecoa as representações de tempo. E um poema que vence o acaso retumba em si a possibilidade do silêncio que resguarda toda a fala. Ausência de origem, o acaso é determinação do múltiplo e a ele semelhante – porém é com seu lançamento ao infinito, seu encontro com o absoluto, que traz sua soberania enquanto eterno retorno do tempo sobre si mesmo, condensado enquanto totalidade de possibilidades e a própria possibilidade do pensamento: “Todo pensamento emite um lance de dados”.

Ausência de origem, o acaso é determinação do múltiplo e a ele semelhante – um eterno retorno do tempo sobre si mesmo, condensado entre múltiplas possibilidades: possibilidade do pensamento: como o disse Blanchot, “o tempo da exceção, na altitude de um talvez”.

 

 

Deleuze, “Diferença e repetição”

Deleuze trava um diálogo com o problema exposto por Blanchot na análise do poema; em Diferença e repetição, ele diz que “o bom lance de dados afirma todo o acaso de uma vez; aí está a essência do que se chama questão”. Segundo ele, há vários lances de dados, “cada um toma o acaso de uma vez e, em vez de o diferente ter diferentes combinações, como resultado do Mesmo, ele tem o mesmo ou a repetição como resultado do Diferente”. O lance de dados concentra toda a potencialidade do pensamento. Afirma todo o acaso de uma vez:

Abolir o acaso é fragmentá-lo segundo regras de probabilidade em vários lances […]. O lance de dados, ao contrário, afirma o acaso de uma vez, e cada lance de dados afirma todo o acaso de uma vez. A repetição dos lances não é mais submetida à persistência de uma mesma hipótese nem à identidade de uma regra constante. […] Que significa, pois, afirmar todo o acaso, a cada vez, de uma vez? Essa afirmação se mede pela ressonância dos disparates que emanam de um lance e que, sob essa condição, formam um problema. Todo o acaso, então, está em cada lance, embora este seja parcial, e aí está de uma só vez”.

Trata-se da afirmação da obra em seu devir, movimento que se torna seu próprio sentido e que possibilita que o espaço interior do pensamento e da linguagem possa assim ser representado de maneira sensível. A própria linguagem é espaço em que as relações se projetam e perspectivam-se, dobram-se e redobram-se, da distância extrema de uma talvez excepcional.

 

 

A obra de Mallarmé foi debatida e analisada ainda por autores como Sartre, Barthes, Gide, Hauser, Hyppolite, Adorno, Valéry, Lyotard, Derrida, Badiou e Burguer. No Brasil, seus poemas foram objeto de reflexão para Manuel Bandeira, Mario Faustino, Leyla Perrone Moisés e para os fundadores da poesia concreta brasileira, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, estes, responsáveis pelas primeiras traduções – transcriações – brasileiras dos poemas de Mallarmé, reunidas no volume Mallarmé.

 

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