Guia de Leitura

Antropologia das religiões

5 outubro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Todos os sistemas, seja culturais, científicos, políticos, econômicos e até artísticos, que se apresentam como portadores exclusivos da verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos” – BOFF, Fundamentalismo – A globalização e o futuro da Humanidade.

Pensando amplamente nesta consideração de Leonardo Boff, levantamos alguns estudos antropológicos sobre religiões – ou que sirvam como apoio teórico para reflexões antropológicas.

O interesse pelos mitos, ritos de iniciação, pela religião e pela magia foi uma constante na antropologia francesa do século XX, e se mantém consideravelmente estável até hoje. Uma antropologia da religião, partindo de uma reflexão sobre a humanidade e sobre a cultura como realidades complexas, busca compreender como o ser humano foi e continua sendo visto, por ele próprio, através de uma das suas mais significativas manifestações, a religião. Não se trata de fazer uma análise de cada uma das religiões, mesmo aquelas mais conhecidas: a Antropologia da Religião desenvolve análises científicas do fenômeno religioso, enquanto experiência antropológica, essencialmente humana.

Para a antropologia, a religião não é um modo arcaico do pensamento científico; é, ao contrário, um espaço distintivo da prática e da crença humanas que não pode ser reduzido a nenhum outro. Disso parece seguir que a essência da religião não deve ser confundida com, digamos, a essência da política, ainda que em muitas sociedades as duas possam se sobrepor e se entrelaçar.

 

Mircea Eliade, “Imagens e símbolos”

Nosso guia de antropologia inicia-se com o livro de um historiador, ligado comumente à chamada fenomenologia da religião. O romeno Mircea Eleade, nas análises desenvolvidas ao longo de sua obra, desvenda os pontos de apoio que permitem ao indivíduo e aos grupos humanos equilibrarem-se e assegurarem seus pensamentos em meio aos movimentos da sua experiência. Em Imagens e Símbolos, o autor reivindica a função fundamental do imaginário e do simbólico para a vida e a cultura.

“O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta, do desequilibrado; ele é consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade –os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, o seu estudo nos permite conhecer o homem, o homem simplesmente”.

O símbolo cumpre sua função ao transmitir uma mensagem, mesmo que seu significado escape à consciência, ou seja modificado, camuflado, pois o símbolo, diz Eliade, dirige-se ao ser humano integral e não apenas à sua inteligência. A principal característica do símbolo é a simultaneidade de sentidos por ele revelados, que podem inclusive ser compreendidos em qualquer cultura. Os símbolos e as imagens têm valências universais porque são “aberturas para um mundo trans-histórico, conservando as culturas ‘abertas’. Ao mesmo tempo, apesar de serem produtos do inconsciente, são depurados no processo histórico e cultural em que estejam inseridos”. A história, diz, pode fazer com que sejam acumuladas novas significações à estrutura original do simbolismo, mas não a destrói. Ao tornarem-se símbolos, os objetos “anulam seus limites concretos, deixam de ser fragmentos isolados para se integrar num sistema, ou melhor, eles encarnam em si próprios, a despeito de sua precariedade e do seu caráter fragmentário, todo o sistema em questão”. Diante dessas considerações, é legítimo falar de uma “lógica dos símbolos, pois qualquer que seja a sua natureza e o plano em que se manifestem, são sempre coerentes e sistemáticos”.

Segundo Eliade, o pensamento simbólico precede a linguagem e a razão discursiva, pois o símbolo revela certos aspectos da realidade que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos têm o poder de revelar verdades secretas do ser e de transportar o ser humano para o mundo espiritual muito mais amplo. Em outro livro, intitulado O sagrado e o profano, o autor estuda a situação do homem em um mundo saturado de valores religiosos e, por exemplo, comenta os simbolismos originais: “Graças às fases da Lua – quer dizer, ao seu ‘nascimento’, ‘morte’ e ‘ressurreição’ –, os homens tomaram consciência de seu próprio modo de ser no Cosmos e de suas possibilidades de sobrevivência ou renascimento. Graças ao simbolismo lunar, o homem religioso conseguiu aproximar amplos conjuntos de fatos, sem relação aparente entre si, e finalmente integrá-los num único ‘sistema’. É mesmo provável que a valorização religiosa dos ritmos lunares tenha possibilitado a realização das primeiras grandes sínteses antropocósmicas dos primitivos”.

Mircea Eliade elaborou uma morfologia do sagrado, constituindo, mediante o método comparativo, modelos ou estruturas da experiência religiosa, buscando neles suas características permanentes. A partir da oposição entre sagrado e profano, ele comparou a experiência religiosa do Oriente e do mundo antigo à experiência profana do Ocidente e do mundo moderno. O sagrado, segundo Eliade, é o elemento central da religião. A distinção, para ele, entre sagrado e profano, é uma distinção ontológica; o simbolismo religioso, um monumento original de qualquer experiência religiosa profunda. A distinção entre sagrado e profano implica numa distinção entre o homem religioso e não-religioso, distintos, por sua vez, no que tange à percepção do tempo, como heterogêneo e homogêneo respectivamente: Eliade concebe que a percepção do tempo, como um meio homogêneo, linear, e inexorável, é uma peculiaridade do homem moderno e não-religioso. O homem arcaico ou religioso (homo religiosus), na comparação, percebe o tempo como heterogêneo, isto é, como dividido entre o tempo profano (linear), e o tempo sagrado (cíclico e retornável).

Analisando a estrutura do mito e dos símbolos religiosos, bem como algumas das suas mais diversificadas manifestações, quer entre os povos primitivos, quer nas civilizações clássicas e nas modernas, Eliade produziu uma obra que constitui, simultaneamente, notável exposição histórica e síntese antropológico-filosófica. Segundo Eliade, a história das religiões divide-se entre duas orientações metodológicas, distintas e complementares: enquanto alguns estudiosos dedicam-se a desvendar as estruturas dos fenômenos religiosos, outros preferem reconstituir o contexto histórico desses mesmos fenômenos. “Os primeiros esforçam-se por compreender a essência da religião, os outros trabalham para decifrar e apresentar sua história”; de modo que os resultados obtidos pelas pesquisas etnológicas e sociológicas devem ser utilizados pelo historiador das religiões, entretanto, é preciso completá-los para que possam assumir “uma perspectiva diferente e mais ampla”, pois “o etnólogo apenas se ocupa das sociedades que denominamos primitivas, enquanto que o historiador da religião incluirá em seu campo de investigação toda a história religiosa da humanidade, desde os primeiros cultos das eras paleolíticas de que se tem notícia, até os movimentos religiosos modernos”.

 

 

Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva”

O trabalho antropológico de Marcel Mauss (1872-1950) é aceito também nas discussões de cunho sociológico. O Ensaio sobre a dádiva – Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, sua obra fundamental, é um marco no desenvolvimento antropológico da sociologia durkheimiana, adotando a etnografia, abrindo-se para as sociedades não-ocidentais e assumindo cada vez mais a comparação e uma visão filosoficamente crítica.

Na então nascente Escola Francesa de Sociologia, M. Mauss escreveu com H. Hubert (1872-1927), em 1899, um dos seus primeiros ensaios, Sobre o sacrifício, no qual tomam como exemplo privilegiado os modelos dos sacrifícios hindu e hebraico. Alguns anos mais tarde, em 1904, Mauss publicou outro ensaio, Esboço para uma teoria geral da magia. O estudo, célebre, distingue e aproxima magia e religião, destacando as propriedades da magia simpática e a sua eficácia: produtos de representações sociais, a magia e a religião são objetos de crença nos quais agem forças coletivas. Em 1925, Mauss publicou o estudo que acabou por tornar-se sua maior contribuição para a antropologia francesa: o Ensaio sobre a dádiva.

Segundo Mauss, que estudava narrativas antropológicas e descrições das trocas em sociedades primitivas, toda representação é relação, ou seja, funda-se sobre a união de uma dualidade de contrários e, justamente, o argumento central do Ensaio é que a dádiva produz alianças, matrimoniais, políticas, religiosas, econômicas, jurídicas e diplomáticas, postulando, assim, um entendimento da constituição da vida social baseada em um constante dar-e-receber, no qual evidencia-se o papel da troca – posteriormente estudado em especial por Pierre Clastres.

Falar de sacrifício é também falar de dádiva: o sacrifício, por exemplo o sacrifício totêmico, é uma dádiva interessada que fazemos para ganhar os favores dos deuses ou desviar a sua cólera: “Em todo sacrifício há um ato de abnegação, pois quem se sacrifica se priva e se dá. Essa abnegação lhe é mesmo freqüentemente imposta como um dever. […] O sacrifício se apresenta, então, sob um duplo aspecto. E um ato útil e urna obrigação. O desinteresse se mescla ao interesse. Por isso ele foi freqüentemente concebido sob a forma de um contrato”. Castigo, dádiva, contrato: esses são os temas centrais da obra de Mauss. No “Ensaio sobre a dádiva”, o antropólogo demonstrou que a vida dos “primitivos” é mais complexa, ativa e dinâmica do que acreditava-se, é, portanto, preciso não representá-la como “estática”, e que a vida econômica está profundamente ligada à moralidade e à religiosidade.

Para Mauss, a dádiva é uma lógica organizativa do social que tem caráter universalizante e que não pode ser reduzida a aspectos particulares como aqueles religiosos ou econômicos. As traduções feitas por diferentes culturas produzem, de fato, desvios semânticos que levam, por exemplo, pensando o caso brasileiro, a uma redução do dom a um fenômeno religioso. Isso dificulta a compreensão da sociologia de Mauss, mas esta dificuldade não pode ser vista como uma restrição linguística insuperável.

No Ensaio sobre a dádiva, Mauss, a partir de um estudo do fenômeno da dádiva entre os povos da Polinésia e da Melanésia e os indígenas da América do Norte, evidencia que os fatores econômicos não são dissociáveis de outros aspectos da vida social. As trocas, sejam elas quais forem, dizem respeito à sociedade no seu conjunto e derivam todas da obrigação de dar. A dádiva tem valor social e reúne simultaneamente questões religiosas, econômicas, políticas, matrimoniais e jurídicas.

A dádiva está presente na própria ideia de da influência decisiva, daquilo que circula, sobre como se formam os atores e como se definem seus lugares em sociedade. No seu texto sobre Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia, por exemplo, Mauss sustenta que, diferentemente dos demais animais, o humano se caracteriza pela presença da vontade, da pressão da consciência de uns sobre outros, das comunicações de idéias, da linguagem, das artes plásticas e estéticas, dos agrupamentos e religiões, em uma palavra, complementa, das “instituições que são o traço da nossa vida em comum”.

Marcel Mauss é espontaneamente identificado a Emile Durkheim, de quem é sobrinho, discípulo e alter ego. Seu Ensaio sobre a dádiva um prolongamento-renovação da teoria durkheimiana da coesão social, da relação indivíduo-sociedade. Sua preocupação fundamental durante a concepção do estudo, e que o situa dentro de um verdadeiro programa de pesquisa, recai sobre as formas arcaicas de contrato.

Mauss abandona, assim, a oposição central e constitutiva da sociologia durkheimiana do fato religioso: a oposição entre sagrado e profano. Durkheim acreditara poder “tudo explicar pela religião”. A partir de então, tudo se poderá compreender a partir do simbolismo. Deixa de ser necessário recorrer à dicotomia entre o sagrado e o profano, já que basta a oposição simples entre simbólico e utilitário, de onde é retirado todo o poder da distinção conceitual primitiva. Ao inverso da concepção durkheimiana do sagrado e do profano, Mauss insistirá continuamente na imbricação entre utilitário e simbólico, entre interesse e desinteresse.

No ensaio, Mauss analisa a dádiva, a reciprocidade e a troca nas “sociedades arcaicas”, principalmente na Melanésia e no noroeste americano, estabelece também uma comparação com “alguns traços dos direitos indo-europeus” – tais como direito romano, hindu clássico e germânico – analisando as trocas que, aparentemente livres e gratuitas, são, como ele demonstra, obrigatórias e interessadas: os presentes. Mauss se refere à noção de hau, do espírito da coisa, para explicar: haveria uma força das coisas que obriga a dar presentes, pois “apresentar alguma coisa a alguém é apresentar alguma coisa de si”.

A dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios, entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Podemos isolar o aspecto econômico de uma troca, mas ela implica sempre também um aspecto religioso (que se evidencia nos sacrifícios, nas dádivas de palavras das rezas etc.), político (que se evidencia nas trocas mal-sucedidas – que redundam em guerra –, na troca de violência ou ainda no desequilíbrio entre o que é trocado e na assimetria temporal implícita em qualquer redistribuição –, ou mesmo estético (a confecção dos objetos, o modo de oferecimento etc.). A troca é assim um fato social “total”.

 

Lévi-Strauss, “Antropologia estrutural dois”

Para Lévi-Strauss, em sua abordagem estruturalista, o pensamento primitivo articula proposições cosmológicas por meio de categorias sensíveis. A significação assim é produzida a partir da relação dos elementos nas narrativas míticas ou na tradução isomórfica.

Lévi-Strauss forneceu à etnologia um valor heurístico no campo das ciências sociais, próximo mas também bastante crítico àquele expressado por Durkheim. Quando assumiu, em 1951, a cadeira de Religiões dos povos não civilizados, fundada em 1888 na École Pratique des Hautes Études, e que fora de Léon Marillier, Marcel Mauss e Maurice Leenhardt, mudou-lhe o nome para Religiões comparadas dos povos sem escrita. Foi nesse quadro institucional e ideológico francês da década de 1950 que Lévi-Strauss experimentou métodos de análise das representações míticas e das práticas religiosas. São os escritos desse período que portanto dão a conhecer de maneira mais clara o que as suas interpretações sobre as religiões ditas primitivas devem (ou não) a Durkheim. Estudando os temas de magia e religião, a antropólogo tornou central determinado conceito de representação em sua teoria do simbólico, de viés cognitivista.

Na Antropologia Estrutural, Lévi-Strauss distingue, assim, as estruturas de ordem “vividas” – relacionadas à realidade objetiva – das estruturas de ordem “concebidas” – as representações que os homens fazem de sua realidade. Enquanto o parentesco, a organização social, as relações de troca pertencem à primeira ordem, a religião e o mito correspondem à segunda. Como Durkheim, Lévi-Strauss reconhece que os fatos religiosos devem ser estudados como parte integrante da vida social. O papel da etnologia seria, pois, o de estabelecer correlações entre diversos tipos de religião e diversos tipos de organização social.

Submetendo os mitos à sua análise estrutural, Lévi-Strauss decompõe a trama narrativa em unidades mínimas de relações, como o parentesco. As frases narrativas que desenvolvem o mesmo tema são agrupadas, então, em conjuntos orgânicos e, estes, comparados a fim de construir uma série de variações. A teoria de Lévi-Strauss do significado está subordinada, portanto, a essa operação de composição de séries e é a própria relação lógica entre as séries que nos dá acesso ao significado do mito. De acordo com sua análise, a narrativa mítica se desenvolve no plano das relações sociais, mas o seu significado se realiza no plano das estruturas mentais. No mito, como diz em O cru e o cozido, “o espírito, deixado a só consigo mesmo e liberado da obrigação de compor-se com os objetos, fica de certo modo reduzido a imitar-se a si mesmo […] e evidencia assim sua natureza de coisa entre as coisas”. A mitologia, apresentada como o universo da regra em si, seria a mais pura expressão do modus operandi da mente humana. Desse modo, como explica a professora Paula Monteiro, no artigo “A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss: desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões“se, para Durkheim, o estudo das crenças religiosas observadas nos daria acesso às categorias abstratas de entendimento, tais como tempo, espaço, gênero e espécie, para Lévi-Strauss, as categorias sensíveis – cru e cozido, fresco e podre -, definidas pela observação etnográfica, servem como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições”.

Para Lévi-Strauss, não é a variedade empírica particular das culturas que o interessa, mas a regra de suas variações, estabelecida pela comparação que demonstra que apenas um número limitado de invariantes organiza todas as estruturações possíveis. É nesse sentido que Lévi-Strauss se interessa pela religião primitiva e pelos mitos, pois entende que toda religião diz respeito a uma exigência universal de ordem: “essa exigência de ordem está na base de todo pensamento que chamamos de primitivo, mas somente porque ela está na base de todo pensamento”. Lévi-Strauss procurou um sentido sob a aparente desordem das representações míticas. Ao contrário de Durkheim, porém, não baseou essa ordem na “natureza das coisas”, e sim nas regras que organizam a linguagem. Para Lévi-Strauss o signo não é um símbolo, ele não “representa” algo que está fora dele. Revelar a significação de um signo não é encontrar o seu sentido verdadeiro, mas compreender a relação que estabelece com outros signos. O pensamento mítico opera com os procedimentos do espírito humano, com os mecanismos universais de pensamento e como eles operam de modo geral.

Segundo, novamente, Paula Monteiro: “Ao privilegiar o tema das classificações primitivas, Lévi-Strauss privilegia a vertente durkheimiana de uma teoria do conhecimento em detrimento de uma teoria da significação na qual o símbolo está no lugar da coisa representada. Na abordagem estruturalista, o pensamento primitivo articula proposições cosmológicas por meio de categorias sensíveis. A significação se produz, então, como se sabe, na relação dos elementos nas frases das narrativas míticas ou na tradução daquilo que está expresso em uma linguagem para outra situada em nível diferente, mas isomórfico”.

 

 

Lionel Obadia, “Antropologia das religiões”

Lionel Obadia é professor de Antropologia na Universidade de Lyon II e diretor do Centre d’études de recherches anthropologiques (CREA). Seu livro Antropologia das religiões trata deste ramo da antropologia geral que se constituiu a partir do estudo da religião – magia, feitiçaria, animismo, totemismo, xamanismo etc – e dos objetos empíricos – mitos, ritos, crenças, representações, organizações sociais -, mobilizando teorias e usando métodos que lhe conferem uma identidade singular no conjunto das ciências da religião.

Obadia postula a existência de uma abordagem antropológica caracterizada por quatro pontos: empírico, indutivo, diferencial e comparativo, trata-se de uma abordagem sinóptica, portanto, de certa forma reducionista. Trata-se de um empirismo que rompe com qualquer perspectiva fenomenológica, não naquilo que ela pode trazer enquanto reflexões para a análise, com foco nas formas observáveis de religião, mas no que tange a seu objetivo, a busca de uma essência, que seja suprassocial.

Cada forma nova e diferente de sistemas religiosos desvendados pela antropologia estabeleceram a impossibilidade de se pensar num sagrado para além das constituições históricas ou de uma continuidade entre formas primitivas e civilizadas de religião. A magia, as feitiçarias em geral, os mitos e tudo que envolve qualquer sistema de crenças, com a antropologia das religiões, passaram a ser valorizados por si mesmos.

O que importa para a antropologia da religião são os significados subjacentes aos sistemas de crenças religiosas de um ou mais grupos sociais. Além disso, contempla também a preocupação com os hábitos, práticas e costumes desses mesmos grupos advindos desses sistemas. Lionel Obadia, de acordo com Silas Guerriero, “chama a atenção para o fato de que os antropólogos acabaram seguindo basicamente duas grandes definições de religião. Por um lado o conceito original de Tylor, já apontado anteriormente, e por outro o de Durkheim. Para o primeiro, a ênfase do religioso, ou o que torna um ato ou uma ideia religiosa, é o fato de se reconhecer a presença de seres espirituais ou sobrenaturais. Para Durkheim, é a ideia de sagrado, em oposição à de profano, que evidencia o religioso. Essas duas grandes acepções do religioso evidenciam a complexidade do fato e as dificuldades em se tentar reduzir num único  parâmetro algo tão abrangente. Embora Tylor tenha influenciado alguns antropólogos de língua anglo-saxônica, é a posição de Durkheim que vai estar mais presente nos estudos antropológicos no que tange à ideia de religião como construção social. Essa vertente acabou sofrendo inúmeros acréscimos e modificações, inclusive na ampliação do conceito de maneira a abarcar a noção de representação coletiva, também pelas mãos de Durkheim, mas que com Marcel Mauss ganhou bastante consistência. É desse último a definição de religião como conjunto de crenças e ritos, discursos e atos, definição essa bastante abrangente e inclusiva, mas que permite delinear os contornos de um sistema religioso ou outro sem reduzi-los a um lugar comum”.

O estudo antropológico das religiões, diz Obadia, não se limitou à busca de uma definição mais  precisa do conceito religioso. Muitas propriedades das religiões particulares que foram sendo estudadas ganharam um estatuto de objeto de estudo particular e constituíram campos autônomos de análises. Dentre esses podemos destacar as crenças, os rituais, os mitos e os símbolos.

A experiência religiosa, concebida em suas particularidades, permitiu o desenvolvimento da Antropologia, no início do século XX, como ciência dessa experiência, própria do homem, inclusive em seu estado social dito primitivo, que se percebe em contato imediato e constante com um mundo invisível e superior.

Um elemento essencial da experiência religiosa foi proposto por Rudolf Otto como um processo de transformação, tomada de consciência ou sentimento de si como ser absolutamente dependente ou criatura dominada. Pressupõe-se, no interior deste processo, a existência de um outro, o elemento sagrado, Deus ou o que quer que se reconheça como divindade. Este processo de consciência é resultante do que Charles Morris designou por processo de semiosis, em que algo se torna signo de alguma coisa por via de uma construção de sentido.

Através da Antropologia da Religião, é possível fazer uma reflexão séria não só sobre o ser humano e a cultura, mas também uma análise antropológica do fenômeno religioso. O que se pretende é, ao mesmo tempo, conhecer de modo científico o fenômeno religioso e os aspectos antropológicos dele decorrentes.

 

 

Pierre Bourdieu, ‘Estrutura e gênese do campo religioso’, in: “Economia das trocas simbólicas”

Iniciamos nosso mapa bibliográfico com um historiador e o fechamos com um sociólogo. Felizmente, as ciências humanas permitem-se imbricações desta sorte e, com elas, tendem a ganhar elementos de reflexão – são deslocamentos “bons para pensar”, inclusive pois nosso intuito não é esgotar um assunto, senão tocá-lo.

Pierre Bourdieu escreveu, em 1971, Gênese e estrutura do campo religioso, publicado no Brasil três anos depois. No texto, afirmava que cada uma das principais teorias da religião poderia ser situada em relação às posições simbolizadas pelos nomes de Marx, Weber e Durkheim.

“Para poder reunir os meios de integrar em um sistema coerente as contribuições das diferentes teorias parciais e mutuamente exclusivas […], é preciso situar-se no lugar geométrico das diferentes perspectivas. Vale dizer, é preciso situar-se no ponto de onde se torna possível perceber, ao mesmo tempo, o que pode e o que não pode ser percebido a partir de cada um dos pontos de vista”.

O que Bourdieu afirma da sociologia da religião de Weber pode-se aplicar a seu desenvolvimento teórico, a saber, que a sociologia da cultura é um capítulo destacado da sociologia do poder.

Segundo Néstor García Canclini, Bourdieu viu nas estruturas simbólicas mais do que uma forma particular de poder, “uma dimensão de todo o poder, isto é, outro nome da legitimidade, produto do reconhecimento, do desconhecimento, da crença em virtude da qual as pessoas que exercem a autoridade são dotadas de prestígio”. Embora Bourdieu não as enuncie de maneira explícita, entende que as questões fundamentais que parecem estar ausentes em seu trabalho são duas: “como estão estruturadas – econômica e simbolicamente – a reprodução e a diferenciação social?”; e “como se articulam o econômico e o simbólico nos processos de reprodução, diferenciação e construção do poder?”. Para respondê-las, Bourdieu retoma duas ideias centrais do marxismo: “que a sociedade está estruturada em classes sociais” e que “as relações entre as classes são relações de luta”.

Segundo Bourdieu, a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social, na medida em que impõem um sistema de práticas e de representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de divisão política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos.

É relevante, para o sociólogo, não a natureza da mensagem religiosa, mas a sua capacidade de atendimento de uma demanda específica, tanto religiosa como especificamente ideológica. Isto é, constituindo um dos campos de produção de bens culturais, as condições de sucesso da profecia dependem do grau de homologia entre o campo da produção e o da recepção.

Parte do esforço de Bourdieu volta-se ao estabelecimento de vínculo entre o aparato religioso e a formação social, demonstrando que a “estrutura dos sistemas de representações e práticas religiosas” tende a assumir a função de instrumento de imposição e legitimação da dominação, contribuindo para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, para a “domesticação dos dominados”.

Essa espécie de “alquimia religiosa”, é responsável por fazer com que o campo religioso não somente cumpra funções estritamente religiosas, ligadas aos interesses nas ações e práticas mágicas, mas, também, o vincula a demandas propriamente ideológicas, donde há a “necessidade de legitimação das propriedades associadas a um tipo determinado de condições de existência e de posição na estrutura social”. A necessidade ideológica, portanto, corresponde à “espera de que uma mensagem sistemática seja capaz de dar sentido unitário à vida, propondo a seus destinatários privilegiados uma visão coerente do mundo e da existência humana, e dando-lhe os meios de realizar a integração sistemática de sua conduta cotidiana. Portanto, capaz de lhes fornecer justificativas de existir como existem, isto é, em uma posição social determinada”.

 

 

O universo dos pensamentos mágico e religioso sempre ocupou um lugar central na reflexão antropológica, graças à relevância que assumem, as crenças e os rituais, relacionados com o mundo dos seres ou das forças invisíveis que controlam a vida dos homens, na vida e organização dos grupos humanos, quer em pequenas sociedades ou nas grandes civilizações contemporâneas. Nenhuma teoria antropológica jamais deixou de se preocupar com questões envolvendo magia e religião e cada uma, a seu modo, buscou construir um arcabouço de conhecimento que desse conta não apenas da compreensão das práticas mágicas e religiosas do outro, muito distante e diferente do ocidental cristão, mas também um olhar sobre as vivências religiosas da nossa própria sociedade.

Nossa seleção buscou pensar uma introdução aos conceitos e temas da antropologia da religião, tomando algumas referências clássicas como Mauss, Eliade, Levi-Strauss, no entanto sem tempo hábil para mencionar referências relevantes e aqui interessantes como horizonte de contraponto, tais como Frazer [O ramo de ouro], Malinowsky [Magia, ciência e religião], Evans-Pritchard [Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande] e Geertz [Clifford Geertz, “Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico”, in: O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa; “A religião como sistema cultural”. In: A interpretação das culturas].

Buscamos apreender teorias sobre ritual e simbolismo a partir de literatura etnográfica clássica e contemporânea, procurando ao longo da história da antropologia desenvolvimentos teóricos em torno dos rituais, tais como sagrado, magia, solidariedade, experiência, ação, eficácia, símbolos, linguagem, comportamento, entre outros.

Um dos principais problemas na antropologia da religião é a definição da própria religião. Certas práticas e crenças religiosas, porém, são recorrentes em diversas culturas, como a crença em espíritos ou fantasmas, o uso de magia como um meio de controlar o supernatural, o uso de adivinhação como um meio de descobrir conhecimento oculto, os resultados de rituais tal como orações e sacrifícios como um meio de influenciar o resultado de vários eventos através de uma agência sobrenatural, sob a forma de xamanismo ou culto aos antepassados. De acordo com Clifford Geertz, religião é “um sistema de símbolos” que atua na formulação de concepções de ordem geral da existência.

 

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