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Uma letra da qual tu és o sentido

11 junho, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Como escriba que cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada de onde procede toda a criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação deste nada como pura, absoluta potência – Agamben.

Egon Schiele

Bartleby, ou da contingência, do filósofo italiano Giorgio Agamben, é um pequeno e precioso texto. Publicado originalmente em 1993, o ensaio analisa a personagem de Melville, das mais insistentes na obra de Agamben, e desenvolve longamente o conceito de potência, central na obra e no pensamento do filósofo, abrindo um espaço de indiscernibilidade entre a potência de ser – ou de fazer – e a potência de não ser – ou de não fazer.

A edição brasileira, publicada pela editora Autêntica, com tradução feita do italiano por Vinícius Honesko, traz também o conto de Herman Melville que inspirou o texto de Agamben, Bartleby, o escrivão – Uma história de Wall Street, este, com tradução de Tomaz Tadeu. O conto de Melville foi originalmente publicado em 1853; tido como precursor do movimento literário existencialista, narra a história de um escrivão que deixa de escrever, sob o ponto de vista de seu patrão, um bem-sucedido e prudente advogado de Nova York, que relata como Bartleby passa a se recusar a fazer tudo o que ele pede, pois “preferiria não fazê-lo”.
Agamben interpreta a recusa de Bartleby não como indiferença, mas como possibilidade de uma potência. O “poder de não fazer algo” revela uma postura ético-política essencial para compreensão dos desafios da contemporaneidade, em que somos instados a fazer, produzir, agir em conformidade com normas e preceitos. Trata-se da ideia de uma “potência de não”, que confere uma positividade à fórmula de Bartleby.

De acordo com Carlos Augusto Peixoto Junior, psicanalista e professor da PUC-RJ, como demonstra no artigo “Deleuze, Agamben e Bartleby”, publicado na Revista Trágica – Estudos de filosofia da imanência, Bartleby, como escrivão que deixou de escrever, “seria a figura extrema do nada do qual procede qualquer criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação deste nada como potência pura e absoluta. Ele, na verdade, teria se transformado na própria folha de papel em branco na qual se escreve. Por isso não seria estranho que ele se demorasse tão obstinadamente no abismo da possibilidade e não parecesse ter a menor intenção de sair dele. Assim ele se contrapõe a toda uma tradição ética que sempre tentou contornar o problema da potência reduzindo-a a termos como vontade e necessidade: ‘seu tema dominante não é o que se pode, mas o que se quer ou o que se deve’. Segundo Agamben, a potência não é idêntica à vontade, assim como a impotência não corresponde diretamente a uma necessidade. Acreditar que a vontade tenha algum poder sobre a potência, que a passagem à ação seja resultado de uma decisão que acaba com a ambiguidade da potência (a qual é sempre potência de fazer ou não fazer), seria justamente a grande ilusão de toda moral. Bartleby questionaria precisamente essa supremacia da vontade mostrando que ela não passa de um princípio que pretende pôr ordem no caos indiferenciado da potência”.

Não querer é uma potência absoluta. Segundo Peixoto, o problema de Bartleby “não é a falta de forças para poder querer algo, já que ele chega a poder (e não poder), sem querê-lo em absoluto. Daí a irredutibilidade de sua fórmula, ‘Eu preferiria não’. Não se trata de não querer copiar ou de não querer abandonar o escritório: ele simplesmente preferiria não fazê-lo. A fórmula, repetida cuidadosamente, destrói qualquer possibilidade de construir uma relação entre o poder e o querer, entre potência absoluta e potência ordenada. Essa é a própria fórmula da potência, a qual não é propriamente afirmativa nem negativa. Bartleby não aceita nem recusa, mas avança e se retira ao avançar, abrindo uma zona de indiscernibilidade entre o sim e o não, entre o preferível e o não”. Desta forma, a experiência poética da personagem, de acordo com a análise de Agamben, aproxima-se da suspensão própria aos céticos antigos, “nem isso nem aquilo”. Conforme pontua Peixoto, o filósofo italiano afirma que os céticos “não viam na suspensão uma simples indiferença, mas a experiência de uma possibilidade ou de uma potência. O que aparece no limiar entre o ser e o não ser, entre o sensível e o inteligível, entre a palavra e a coisa, não é o abismo obscuro do nada, mas a intensa luminosidade do possível. […] Com o seu ceticismo, Bartleby afirma uma preferência e uma potência que já não servem para assegurar a primazia do ser sobre o não ser porque existem sem razão de existir, na indiferença entre o ser e o nada. No entanto, essa indiferença não implica na equivalência de dois princípios opostos, mas no modo de ser de uma potência purificada em relação a qualquer razão. […] ao liberar-se do princípio de razão, se liberta tanto do ser como do não ser, criando a sua própria ontologia”. Tal potência, enquanto poder ser ou não ser, se subtrai, aponta ainda o psicanalista no mesmo artigo, “por sua própria definição, a qualquer condição de verdade e, antes de tudo, ao mais firme de todos os princípios, qual seja, o princípio de contradição. Um ser que pode ser e, concomitantemente, não ser, afirma Agamben, recebe em filosofia o nome de contingente. O experimento no qual Bartleby se arrisca é na verdade um experimento de contingência absoluta”.

De acordo com Agambem, o contingente “não é necessário nem eterno, mas aquilo cujo contrário teria podido ocorrer no mesmo momento em que isso acontece”. Algo que pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, abrindo a questão dos “passados contingentes”, como mostra o filósofo: “Bartleby questiona o passado desta maneira: ele o reivindica. Não simplesmente para redimir aquilo que se passou, para fazê-lo ser de novo, mas para reconduzi-lo à potência, à indiferente verdade da tautologia. O ‘preferiria não’ é a restitutio in integrum da possibilidade que a mantém a meio caminho entre o acontecer e o não acontecer, entre o poder ser e o não poder ser. Trata-se da lembrança do que não se passou”.

Conforme demonstra Diego Guimarães em sua dissertação de mestrado, intitulada “Agamben & Bartleby: a personagem como paradigma para investigar a potência de não e a inoperosidade” e defendida na UFOP em 2015, o efeito do conto de Melville sobre Agamben evidencia-se emmuitos escritos do filósofo italiano. Segundo o pesquisador, Bartleby, ou da contingência, foi “publicado na Itália no livro Bartleby: A fórmula da criação (1993), como desfecho provisório da reflexão do autor sobre questão da potência, presente nas obras iniciais de Agamben, entre as quais destaco A ideia da prosa (1985) e A comunidade que vem (1990), esta com capítulo dedicado à personagem, aquela com dois acréscimos feitos em 2002, para a segunda edição italiana da Ideia da prosa, onde Bartleby é utilizada nos ensaios Ideia do estudo e Ideia da política. Antes disto, a personagem já havia aparecido em dois artigos da década de 80, Quatro glosas a Kafka (1986) e Bartleby não escreve mais (1988), em abordagens sobre aquela mesma questão. Posterior ao comentário de 1993, Bartleby é também invocado em dois volumes da tetralogia Homo Sacer, em O poder soberano e a vida nua (1995) e em Opus Dei (2012), respectivamente volumes I e II.5. Se o desfecho da reflexão de Agamben sobre a potência é dito provisório no texto de 1993, é porque sua leitura da questão e da personagem vem ganhando novas implicações no decorrer de sua reflexão filosófica, como por exemplo a relação da potência de não com a noção de inoperosidade”.

A inoperosidade consiste, como demonstra Guimarães, em “uma existência genérica da potência (do hábito, do uso), que não se resume a um trânsito rumo a um fim, mas que se configura, ao invés, como um meio sem fim. Essencial para melhor compreendê-la é pensar primeiro o que lhe opõe, ou seja, a operatividade. Esta indica um trânsito necessário de uma possibilidade de uso a um uso específico; nela o ser é a própria operação, não está em evidência a dimensão do uso, mas a do necessário usar, ou, necessidade de obrar: o ser é aquilo que faz e faz aquilo que é. Portanto, a operatividade designa um ser que não é simplesmente, mas põe-se em obra, efetuando e realizando a si mesmo; e que nesta efetualidade é visto como inseparável de seus efeitos, resumindo-se a uma funcionalidade. Há um deslocamento no qual o ser não é a possibilidade de ser, mas o ser em ato. Desfazer tal inversão é um dos objetivos de Agamben com o conceito de inoperosidade; contra a operatividade do uso, ele destaca o ser como possibilidade de operar/usar, e não como a própria operação/uso. Ser inoperoso significa não possuir uma operação específica e nem mesmo uma necessidade ou um dever de operar, seja conforme a contingência ou conforme à vontade, não havendo vínculo a uma função ou uso específico, mas, ao contrário, fazendo prevalecer a cada uso a possibilidade para um uso diverso”. Na ontologia da operatividade, o homem é apreendido enquanto age. O interesse na personagem de Melville recai justamente sobre a restituição que sua fórmula, “preferiria não”, confere à potência de não do ser, iluminando Bartleby como possibilidade absoluta, que lança luz também sobre a inoperosidade, sem, no entanto, de fato ser inoperoso – e sem que os conceitos de inoperosidade e de potência de não confundam-se ou amalgamem-se. De acordo com Diego Guimarães, a “inoperância, désouvrement, não pode ser, segundo Agamben, uma simples ausência de obra nem uma forma soberana e sem emprego da negatividade, de modo que ele a pensa como um modo de existência genérica da potência, que não se esgota em um trânsito da potência ao ato. […] De modo que a inoperância não é nem atividade e nem inércia, mas algo entre estes, ou estes de outra perspectiva: a inoperância, para o homem, é a possibilidade de exercer a sua impotência em todo ato, em toda obra”.

Como demonstra Guimarães, “o que Agamben quer é pensar o ser fora do limite de seus efeitos; na sua ontologia da inoperosidade, o ser opera e não opera indistintamente”. Fórmula da contingência por excelência, o escrevente que não escreve é a potência perfeita. Assim, nas palavras do pesquisador, “para ambos os membros, o que se realiza e o que não se realiza, é restituída a contingência, a possibilidade de ser e de não ser. O contingente passa ao ato, realiza-se, apenas quando cede toda a sua potência de não ser, ‘quando nele ‘nada existirá de potente não ser’ e ele poderá, por isto, não não-poder’”.

Mais uma das consequência filosóficas do ensaio de Agamben, com o resgate da contingência absoluta, coloca-se em cheque o princípio da irrevocabilidade do passado, abrindo a possibilidade de questionamento acerca do que haveria de irrealizável retroativamente na potência. Segundo o filósofo, “Bartleby prepara o seu experimento. Ele toma à letra a tese aristotélica, segundo a qual a tautologia ‘se-verificará-ou-não-se-verificará’ é necessariamente verdadeira no seu todo, para além do realizar-se de uma ou outra possibilidade. O seu experimento diz respeito precisamente ao lugar desta verdade, tem em vista exclusivamente a verificação de uma potência enquanto tal, isto é, de alguma coisa que pode ser e, ao mesmo tempo, não ser. Mas um tal experimento é possível só pondo em questão o princípio de irrevogabilidade do passado, ou, antes, contestando a não realizabilidade da potência no passado”.

 

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.Trecho.

I.2. Na tradição da filosofia ocidental, a imagem fez fortuna. Ao traduzir grammateion por tabula rasa, o primeiro tradutor latino do De Anima a confiou a uma nova história, que deveria desembocar, por um lado, na “folha em branco” de Locke (“suponhamos que no início a mente seja aquilo a que se chama de folha branca, privada de qualquer caractere, sem nenhuma ‘ideia’”) e, por outro, na incongruente expressão “fazer tábula rasa”. A imagem continha, de fato, a possibilidade de um equívoco, que certamente contribuiu para o seu sucesso. Já Alexandre de Afrodísia havia notado que o filósofo não deveria ter falado de um grammateion, mas, de maneira mais precisa, da sua epitêdeiotês, isto é, da fina camada de cera sensível que o recobre e sobre o qual o estilete grava os caracteres (nos termos dos tradutores latinos, não de tabula rasa, mas de rasura tabulae). A observação (sobre a qual Alexandre tinha especiais razões para insistir) era, todavia, exata. A dificuldade, que Aristóteles procura contornar com a imagem da tabuleta, é, de fato, aquela da pura potência do pensamento e de como seja concebível a sua passagem ao ato. Pois, se o pensamento já tivesse em si qualquer forma determinada, já fosse sempre alguma coisa (como é uma coisa a tabuleta para escrever), ele necessariamente se manifestaria no objeto inteligível e impediria, assim, a sua intelecção. Por isso, Aristóteles tem o cuidado de especificar que o nous “não tem outra natureza senão a de ser em potência e, antes de pensar, não é em ato absolutamente nada”.

A mente é, portanto, não uma coisa, mas um ser de pura potência, e a imagem da tabuleta para escrever sobre a qual nada ainda está escrito serve precisamente para representar o modo em que existe uma pura potência. Toda potência de ser ou de fazer algo é, de fato, para Aristóteles, sempre também potência de não ser ou de não fazer (dynamis mê einai, mê energein), uma vez que, de outro modo, a potência passaria desde sempre ao ato e com este se confundiria (segundo a tese dos Megáricos refutada explicitamente por Aristóteles no livro Theta da Metafísica). Essa “potência de não” é o segredo cardeal da doutrina aristotélica sobre a potência, que faz de toda a potência, por si mesma, uma impotência (tou autou kai kata to auto pasa dynamis adynamia – Met. 1046a, 32). Como o arquiteto mantém sua potência de construir mesmo quando não a coloca em ato e como o tocador de cítara é tal porque também pode não tocar a cítara, assim o pensamento existe como uma potência de pensar e de não pensar, como uma tabuleta encerada sobre a qual nada ainda está escrito (o intelecto possível dos filósofos medievais). E como a camada de cera sensível é de repente gravada pelo estilete do escriba, assim também a potência do pensamento, que em si não é algo, deixa advir o ato da inteligência.

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BARTLEBY, OU DA CONTINGÊNCIA

Autor: Giorgio Agamben
Editora: Autêntica
(111 págs.)

 

 

 

 

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