Resenhas

A caminhada como transformação (Parte II)

28 outubro, 2020 | Por Tânia Gomes Mendonça

Uma reflexão sobre Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso

Tânia Gomes Mendonça

 

Ao abrirmos o livro Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e ilustrações de Madalena Matoso, nos deparamos com um enorme pássaro amarelo, cuja asa é um parque com um gramado verde e um banco vermelho. O seu corpo possui tracejados que revelam prédios, ruas, carros, casas, um rio e um mercado. O pássaro é, afinal, um mapa. Uma ave que, talvez, quem sabe, possa alçar vôo durante a nossa leitura…

Gosto de andar por aí.
Desço as escadas a correr, salto os degraus dois a dois
e num instante entro na rua.
Na rua não há teto. Sopra o vento.
Às vezes chove, às vezes faz sol.
Na rua não há paredes. Há estradas, muros e lugares,
mas o mundo é enorme (acho que não tem fim).

Assim é o texto da primeira página do livro. Nela, vemos um senhor idoso e um menino, que caminham por entre tracejados com cores chapadas – as mesmas do pássaro, que provavelmente, já se encontra vagando pelo céu do leitor. E a ilustração, com suas marcas de possíveis pegadas e passeios, parece nos convidar a atravessar a experiência deste livro ilustrado.

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Resenhas

A caminhada como transformação (Parte I)

10 agosto, 2020 | Por Tânia Gomes Mendonça

Uma reflexão sobre A estrada que não levava a lugar algum, de Gianni Rodari

Tânia Gomes Mendonça

 

“Na saída do vilarejo,
abriam-se três estradas:
uma seguia em direção ao mar,
outra, em direção à cidade
e a terceira não levava
a lugar nenhum”.

Assim se inicia o conto do escritor Gianni Rodari, A estrada que não levava a lugar nenhum, publicado em formato de álbum ilustrado em 2016, pela Editora 34, com ilustrações de Sandra Jávera e tradução de Glória Kok. Já nesta primeira página da obra, nos deparamos, na imagem, com uma estrada principal que se bifurca em três. Qual seria a estrada que não leva a lugar algum? Por que, então, ela existiria?

E eis que, ao virarmos a página, conhecemos o protagonista da história: o menino Martim, o qual havia indagado a quase todos do lugar onde vivia acerca da misteriosa estrada, sempre recebendo a mesma resposta: esta não levava “em parte alguma”. Mas o garoto, curioso, não se contentava com esta provável certeza do vilarejo. Assim, insistia: “como vocês podem saber, se nunca estiveram lá?”. Com isso, devido à sua obstinação, passaram a chamá-lo de Martim Cabeçadura. E, enquanto a narrativa se espalha no decorrer das páginas, as ilustrações, em tons azulados, oferecem as nuances e as curvas da estrada tão instigante.

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matraca

Cataclismo biológico

29 junho, 2020 | Por Isabela Gaglianone

 

“Revoada”, Tânia Gomes Mendonça. Colagem a partir de fotografia de Harald Schultz.

 

A situação é crítica. Se os indígenas brasileiros já tinham que literalmente autodefenderem-se, agora, com a pandemia, resta-lhes apenas a tentativa de sobre-viver. A cada dia os dados tornam-se obsoletos, uma vez que os casos de Covid-19 entre os povos indígenas têm aumentado em grande velocidade. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em parceria com o trabalho de apuração de organizações indígenas regionais, vem noticiando a trágica atualização dos números da doença entre os povos indígenas brasileiros, reunindo as informações dessas organizações às divulgadas pela SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

 

Entre os indígenas mais afetados pela pandemia, encontram-se os idosos, pertencentes ao “grupo de risco”, cujas mortes representam drástica desarticulação política e cultural, pois são guardiões da memória e da história de seus povos. A cada uma dessas mortes, como disse a líder indígena Alessandra Korap, “é como se uma biblioteca estivesse sendo queimada”.

 

Algumas populações indígenas têm se articulado para receberem auxílio, que a cada dia se faz mais urgente. É possível contribuir assinando as petições, realizando doações e divulgando.

 

Algumas maneiras de ajudar populações indígenas em meio à pandemia:

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Resenhas

Pode o(a) subalterno(a) falar?

22 outubro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

“Mulher em armadura”, Odilon Redon, 1891 [The Metropolitan Museum of Art]

Gayatri Chakravorty Spivak, teórica literária, crítica feminista e professora de Literatura Comparada e Sociedade na Columbia University, em Nova York, é uma das mais influentes intelectuais pós-coloniais existentes. Notorizou-se por seu monumental trabalho como tradutora e prefaciadora da Gramatologia de Derrida nos Estados Unidos, em 1976.

Um de seus ensaios mais conhecidos é Pode o subalterno falar? [Can the subaltern speak?], publicado originalmente em 1985. Texto filosófica e antropologicamente denso, parte de uma crítica aos intelectuais ocidentais para refletir sobre a prática discursiva do intelectual pós-colonial e sobre a possibilidade de agenciamento do sujeito subalterno. Spivak critica particularmente Deleuze e Foucault tomando como base seu diálogo em “Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze” [publicado em Microfísica do poder] , para apontar a condição etnocêntrica intrínseca à intelectualidade ocidental quando se trata de sua relação com a projeção da alteridade, por um lado, e, por outro decorrente , sobre a própria falta de espaço para falar não a falta de uma voz propriamente dita , ocupável pelo subalterno. Sobretudo pela mulher subalterna, que é duplamente calada: “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”, afirma a autora.

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Artes Plásticas

A imagem em movimento

21 junho, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Índio norte-americano hopi, fotografado em meio ao ritual da dança da serpente

“Nosso reino é o do entre-dois” [1]

O comentário de Philippe-Alain Michaud sobre a obra, a vida e as ressonâncias da “história de arte sem palavras” de Warburg é vertiginoso desde o título e, justamente, pelo ponto de vista que ele imediatamente esclarece: Aby Warburg e a imagem em movimento. O movimento como tópica da análise contorce-se como as serpentes do Laocoonte ou dos índios pueblos: é metafórico e literal, geográfico e histórico, diz respeito aos movimentos de expressão e de orientação do homem no mundo, culturais ou religiosos. A considerar a estrutura do livro, Michaud traça um roteiro e movimenta-se geograficamente, nomeando seus capítulos à guisa dos lugares que foram cenário para os estudos de Warburg e por ele visitados. Nova York, Florença, Hamburgo, Novo México: se a simples justaposição dos nomes dos lugares já suscita um deslocamento cartográfico desde o sumário, o autor ainda desdobra em distintos escopos a ideia de movimento com os predicados dos títulos: “Nova York: o palco cinematográfico”, por exemplo. Também são “palco”, respectivamente “teatral” e “da história da arte”, Florença e Hamburgo. Florença é ainda “circulação dos corpos móveis” e “espaço da pintura”, em capítulos em que Michaud segue a interpretação de Warburg a respeito das rupturas na transmissão das formas na pintura do Quattrocento: mote warburguiano desde a análise das obras de Botticelli, sob a representação do movimento na arte renascentista sobrevive o indício de um movimento cultural mais profundo, a saber, a mistura de diferentes níveis de cultura, de referências mitológicas permeadas “ao tecido da vida cotidiana”[2], mistura complexa e tensa que é fruto paradoxal de um movimento de aproximação e de distorção da Antiguidade e que revela pathos primordiais da natureza expressiva humana. A interpretação de Warburg sobre os pintores renascentistas desemboca, como mostra Michaud, baseado em anotações dos Bruchstücke[3], em outro movimento, concomitante, no sujeito – tanto enquanto entrada do sujeito individual nas pinturas através da arte do retrato, quanto do sujeito que é expectador e que concatena uma sequência de imagens, movimento interpretativo a que Warburg chama “perda da contemplação serena”[4].
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matraca

Uma letra da qual tu és o sentido

11 junho, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Como escriba que cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada de onde procede toda a criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação deste nada como pura, absoluta potência – Agamben.

Egon Schiele

Bartleby, ou da contingência, do filósofo italiano Giorgio Agamben, é um pequeno e precioso texto. Publicado originalmente em 1993, o ensaio analisa a personagem de Melville, das mais insistentes na obra de Agamben, e desenvolve longamente o conceito de potência, central na obra e no pensamento do filósofo, abrindo um espaço de indiscernibilidade entre a potência de ser – ou de fazer – e a potência de não ser – ou de não fazer.

A edição brasileira, publicada pela editora Autêntica, com tradução feita do italiano por Vinícius Honesko, traz também o conto de Herman Melville que inspirou o texto de Agamben, Bartleby, o escrivão – Uma história de Wall Street, este, com tradução de Tomaz Tadeu. O conto de Melville foi originalmente publicado em 1853; tido como precursor do movimento literário existencialista, narra a história de um escrivão que deixa de escrever, sob o ponto de vista de seu patrão, um bem-sucedido e prudente advogado de Nova York, que relata como Bartleby passa a se recusar a fazer tudo o que ele pede, pois “preferiria não fazê-lo”.
Agamben interpreta a recusa de Bartleby não como indiferença, mas como possibilidade de uma potência. O “poder de não fazer algo” revela uma postura ético-política essencial para compreensão dos desafios da contemporaneidade, em que somos instados a fazer, produzir, agir em conformidade com normas e preceitos. Trata-se da ideia de uma “potência de não”, que confere uma positividade à fórmula de Bartleby.

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Literatura

Haverá um dia em que os rios não morrerão de sede?

11 abril, 2018 | Por Morada das Histórias

Uma leitura comparada entre os livros
Um dia, um rio e Os rios morrem de sede 

Ilustração de André Neves, do livro “Um dia, um rio”

Na tarde do dia 5 de novembro de 2015, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos de mineração do Fundão, situada no subdistrito de Bento Rodrigues (35 km de distância em relação ao município de Mariana – Minas Gerais). A empresa responsável pelo controle das atividades de extração nessa localidade é a Samarco Mineração S.A., um empreendimento multinacional conjunto das maiores empresas de mineração do mundo (a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton).

A lama de 39,2 milhões de m³ de rejeitos de minério se alastrou por cerca de 650 quilômetros entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo – percorrendo os rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce até alcançar o Oceano Atlântico. Ecossistemas foram extremamente afetados (animais e plantas morreram), denúncias de contaminação da água foram apresentadas aos órgãos ambientais e ao Ministério Público e pescadores de comunidades ribeirinhas mineiras e capixabas perderam boa parte das condições de sobrevivência e trabalho [2].

Um dia, um rio é um livro que nasceu a partir de um pedido de Márcia Leite, coordenadora da editora Pulo do Gato, motivada pelos sentimentos de angústia, indignação, denúncia e revolta causados pela maior catástrofe ambiental já registrada na história do Brasil – o desastre de Mariana.

A partir deste contexto, as palavras do mineiro Leo Cunha [3] e as ilustrações do pernambucano André Neves [4], criadores da obra aqui analisada, apresentam a história de um rio/menino que, de repente, tem sua vida transformada pela inundação provocada por uma lama/monstro/máquina. O livro foi publicado em outubro de 2016 – um mês antes, portanto, do primeiro aniversário da catástrofe que ocorreu e vitimou o vale do Rio Doce.

Leo Cunha afirma, em entrevista para a Revista Crescer, que seu desejo era “falar desse caso para as crianças de maneira poética, literária, sem ser didático. Procurei criar uma força simbólica e afetiva sem o tom de denúncia. Eu vi muitas reportagens, visitei a região, então, para escrever, precisei mergulhar na linguagem. Pensei o rio como um personagem que conta a vida antes e depois do desastre”.

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Literatura

Itinerário de Pasárgada

28 março, 2018 | Por Isabela Gaglianone

“Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores. Não sei se estou sutilizando demais, mas é tão difícil explicar porque num desenho ou num verso esta linha é viva, aquela é morta.” – Manuel Bandeira

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A conhecida autobiografia de Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, foi publicada pela primeira vez em 1954. Então com 68 anos de idade e poeta já consagrado, Bandeira revisita seu refúgio onírico, a famosa Pasárgada que o acompanhou durante a vida desde seus dezesseis anos, quando descobriu o nome desta pequena cidade, nas montanhas da Pérsia, fundada por Ciro.

“Vou-me embora pra Pasárgada”, escrevera em 1930, batizando o notório poema publicado em Libertinagem; símbolo de evasão, de “toda a vida que podia ter sido e que não foi”, Pasárgada acabou por se tornar uma identificação do itinerário da própria busca literária do poeta.

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lançamentos

A liberdade é uma luta constante

19 março, 2018 | Por Isabela Gaglianone

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“Colocar a violência em primeiro plano quase inevitavelmente serve para obscurecer as questões que estão no centro das lutas por justiça” – Angela Davis.

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A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis, acaba de ser lançado no Brasil pela Boitempo. O livro reúne três entrevistas, concedidas por Davis ao ativista Frank Barat – responsável pela organização do livro e pelo texto introdutório à edição – ao longo de 2014, além de sete discursos, proferidos pela militante, entre 2013 e 2015. Ao longo dos textos, Angela Davis aborda diversas formas de submissão humana e, como pontua a escritora Conceição Evaristo, no texto de orelha, “nos traz novas orientações para pensar a luta contra o racismo, a machismo, o sexismo e outras formas de subjugação existentes em nossa sociedade”.

Ativista, professora, ícone do movimento Black Power, autora de livros já clássicos, como Mulheres, raça e classe [Boitempo, 2016], Davis discute Ferguson – em 2014, Michael Brown, de 18 anos, foi baleado por um policial na cidade de Ferguson, no estado do Missouri, dos Estados Unidos, caso que revelou um padrão racista na polícia local -, a situação da Palestina, o abolicionismo prisional, iluminando as conexões entre as lutas contra a violência estatal e a opressão ao longo da história e ao redor do mundo. A liberdade não só é uma luta constante, como uma luta global.

Em tempos dragados pela lógica neoliberal, em que mais parece que a liberdade é um luto constante, os textos de Angela Davis são inspiradores. A intelectual, que permanece entusiasta da liberdade da população pobre e trabalhadora, mostra que, observada sob um ângulo mais amplo, a história dos movimentos de libertação prova que forças aparentemente indestrutíveis podem ser facilmente destroçadas. Em tempos de execução de uma ativista, mulher e negra, no Brasil, a tradução e publicação desse livro grita a importância da constituição de bases essenciais para a luta contra as forças máximas do sistema corporativo e para a personificação coletiva da resistência.

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matraca

História dos crimes e da violência no Brasil

31 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Batalha entre Lápidas e Centauros, Peter Paul Rubens, 1608 – 1610 [Rijks Museum]

História dos crimes e da violência no Brasil, coletânea organizada pelas historiadoras Mary Del Priore e Angélica Müller, acaba de ser lançada pela Editora Unesp. Trata-se de uma reunião de ensaios e artigos, escritos por autores de diversas áreas, que buscam compreender os mecanismos de propulsão da violência, em suas variadas manifestações, no Brasil.

As organizadoras perguntam: “Em nossa sociedade, cresce a violência ou nossa sensibilidade em relação a ela?”. Em torno desta indagação, o livro compõe um mosaico histórico, que convida à reflexão sobre sobre as formas de infrações que permeiam nosso cotidiano, sobre os crimes e violências presentes em nossa sociedade, praticados de variados modos e em diversas esferas.

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lançamentos

Doutor Jivago

19 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

— Metafísica, meu caro, os médicos me proibiram. Meu estômago não digere.
— Deus o proteja. Deixemos isso pra lá. O senhor é um felizardo! Essa vista é admirável! Decerto vive aqui e nem a percebe.
Observar o rio fazia doer os olhos. As águas ondulavam e refletiam a luz do sol como folhas de metal. De repente, a superfície se enrugou. Uma balsa navegava para a outra margem levando cavalos, carroças, mujiques e mulheres.
— Olhe, ainda são cinco horas — disse Ivan Ivánovitch. — Aquele é o expresso de Sízran. Ele passa por aqui alguns minutos depois das cinco.
Ao longe na planície, da direita para a esquerda cruzava um trem amarelo e azul, parecendo menor pela distância. De repente, perceberam que ele parou. Debaixo da locomotiva, tufos de vapor branco se elevaram. Um pouco depois, ouviram-se apitos de alarme.
— Estranho — disse Voskobóinikov. — Há algo errado. Não há razão para ele parar ali no pântano. Alguma coisa está acontecendo. Bem, vamos tomar o nosso chá.

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O romance Doutor Jivago, do russo Boris Pasternak, acaba de ganhar uma cuidadosa edição brasileira pela Companhia das Letras, com tradução de Sônia Branco e Aurora Fornoni Bernardini.

Destacado por Eric Hobsbawn, em seu clássico A era dos extremos, como autor de relevância indiscutível, Boris Pasternak era poeta e, ao adentrar o terreno da prosa, produziu esta única e grandiosa obra. Seguindo a grande tradição do romance épico russo, herdeiro da prosa oitocentista, o romance traça um panorama completo da sociedade russa em um período historicamente crucial: a Revolução Russa, cujo drama e imensidão são retratados através da história do médico e poeta Iúri Andréievitch Jivago. Por seus olhos hesitantes, o leitor testemunha a eclosão e as consequências deste que foi um dos eventos mais decisivos do século. Em tempos sem esperança no que concerne à aspiração a uma vida normal, o amor de Jivago por Lara e sua crença no indivíduo ganham contornos de verdadeira resistência.

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história

“Este mundo tem as suas noites, e não são poucas”

16 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone
Goya, gravura da série "Caprichos y disparates"

Goya, gravura da série “Caprichos y disparates”

Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo, do historiador Johan Huizinga (1872-1945), foi publicado originalmente em 1935, frente a uma civilização ocidental desmoralizada pela Primeira Guerra Mundial e às portas de uma Segunda Grande Guerra – na qual o autor foi morto, em um campo de concentração na Holanda –, marcada pela polarização política e pela ascensão de regimes totalitários baseados em princípios pseudocientíficos, os maiores sintomas da infantilização dos indivíduos e da decadência geral de toda a cultura europeia. Huizinga intui, quase profeticamente, a derrota das utopias e o estabelecimento de um “mundo esfacelado”, em que os indivíduos são isolados, impotentes contra os grandes regimes e imersos em uma cultura cada vez mais empobrecida pelo tecnicismo e pela falta de um compromisso comum entre os homens.

O livro trata do lúdico, e de sua perda. Lê-se, já na epígrafe da obra: “Este mundo tem as suas noites, e não são poucas”.

Uma bela edição foi publicada no Brasil em 2016, pela Editora Caminhos, com tradução de Sérgio Marinho. Continue lendo

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matraca

Prometeu desacorrentado, um drama lírico em quatro atos

12 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

“Tenhas pena dos desamados servos
do Céu, e não de mim, que à mente entrono
a paz, qual luz no sol: é vão falar!
Chama os demônios”.

Jean Delville, "Prometheus", 1907

Jean Delville, “Prometheus”, 1907

O poeta Percy Shelley (1792-1822) compõe, com Lord Byron e John Keats, a tríade mais expressiva do poesia romântica inglesa. Pouco traduzido no Brasil, ganhou, em 2015, uma edição cuidadosa com Prometeu desacorrentado e outros poemas, a mais extensa seleção de poemas de Shelley já publicada em português. A antologia, bilíngue, foi selecionada e traduzida por Adriano Scandolara, pesquisador da obra do poeta pela UFPR. A tradução é feliz ao manter o vigor dos poemas originais.

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lançamentos

Qua! qua! ecco! così! E basta!

10 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone
Giorgio De Chirico

Giorgio De Chirico, “La commedia e la tragedia” (1926)

Pirandello em cinco atos reúne cinco peças de Luigi Pirandello (1867-1936), um dos mais notórios escritores italianos do século XX: “O torniquete”, “Limões da Sicília”, “A patente”, “O homem da flor na boca” e “O outro filho”. O belo volume foi publicado no final do ano passado pela Editora Carambaia, com tradução e seleção dos textos realizadas por Maurício Santana Dias, professor de Literatura Italiana e Estudos da Tradução na USP. O livro conta ainda com um ensaio do tradutor, que trata da gênese das peças e estabelece relações com outras obras de Pirandello. Parte das obras reunidas neste volume já foi encenada em palcos brasileiros, mas todas permaneciam ainda inéditas em livro no país.

A produção dramatúrgica de Pirandello é posterior à sua produção prosaica e, inclusive, as cinco peças aqui reunidas, todas de ato único, foram criadas a partir de histórias que o autor siciliano havia escrito anteriormente sob o formato de novelas. Reconhecido pela genialidade de sua produção literária em prosa, foi, no entanto, no teatro que Pirandello levou às últimas consequências as tensões entre fato e ficção, marca fundamental de sua obra.

“Minha arte é cheia de compaixão por todos aqueles que iludem a si próprios”, diz o próprio Pirandello. “Mas, é inevitável, que esta compaixão seja seguida pelo escárnio feroz a um destino que condena o homem à mentira”. Continue lendo

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história

As verdades já são imaginações

8 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

“Longe de se opor à verdade, a ficção não é mais do que um seu subproduto: basta-nos abrir a Ilíada para entrarmos na ficção, como se diz, e perdermos o norte; a única diferença é que a seguir não acreditamos nela. Há sociedades em que uma vez o livro fechado, se continua a acreditar e outras em que se deixa de acreditar”.

Sandro Botticelli, "Palas e o Centauro", c. 1482.

Sandro Botticelli, “Palas e o Centauro”, c. 1482.

O que é o mito? É história alterada? É história aumentada? Uma mitomania coletiva? Uma alegoria? O que era o mito para os gregos? O sentimento da verdade é muito amplo (abrange facilmente o mito), “verdade” quer dizer muitas coisas e pode até abranger a literatura de ficção. Estas são algumas das questões que norteiam o belo e erudito livro do historiador e arqueólogo francês Paul Veyne, Os gregos acreditavam em seus mitos? – Ensaio sobre a imaginação constituinte.

“A partir do exemplo da crença dos gregos em seus mitos”, diz o historiador, “eu me propus então estudar a pluralidade das modalidades de crença: crer na palavra dada, crer por experiência, etc. Por duas vezes, este estudo me projetou um pouco mais longe. Foi necessário reconhecer que em vez de falarmos de crenças, devíamos simplesmente falar de verdades”. Como colocou o escritor Gilles Lapouge, em resenha escrita para o jornal Le Monde, nesse sentido, a verdade “não é mais real que os mitos. Ela é a filha do tempo. Os homens a inventaram como inventam a História. E a verdade de agora é tão alucinada quanto todas as verdades que a precederam”.

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