história

“Este mundo tem as suas noites, e não são poucas”

16 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone
Goya, gravura da série "Caprichos y disparates"

Goya, gravura da série “Caprichos y disparates”

Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo, do historiador Johan Huizinga (1872-1945), foi publicado originalmente em 1935, frente a uma civilização ocidental desmoralizada pela Primeira Guerra Mundial e às portas de uma Segunda Grande Guerra – na qual o autor foi morto, em um campo de concentração na Holanda –, marcada pela polarização política e pela ascensão de regimes totalitários baseados em princípios pseudocientíficos, os maiores sintomas da infantilização dos indivíduos e da decadência geral de toda a cultura europeia. Huizinga intui, quase profeticamente, a derrota das utopias e o estabelecimento de um “mundo esfacelado”, em que os indivíduos são isolados, impotentes contra os grandes regimes e imersos em uma cultura cada vez mais empobrecida pelo tecnicismo e pela falta de um compromisso comum entre os homens.

O livro trata do lúdico, e de sua perda. Lê-se, já na epígrafe da obra: “Este mundo tem as suas noites, e não são poucas”.

Uma bela edição foi publicada no Brasil em 2016, pela Editora Caminhos, com tradução de Sérgio Marinho.

Conforme aponta Fabrício Tavares de Moraes, tradutor e doutor em Literatura, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 15 de outubro de 2017, “Johan Huizinga pertence ao grupo dos raros autores cuja amplitude de pensamento suscita a admiração dos polos em geral antitéticos da intelectualidade. Isto se deve à envergadura de uma consciência que se estende e toca em ambos os extremos da experiência humana e que se expressa com a clareza proveniente da fidelidade ao próprio pensamento”. Moraes pergunta: “trata-se de um pensador que, nas palavras de Voegelin, percebeu que a revolta egofânica – a insurreição do homem contra a ordem do real e sua transcendência – conduziria derradeiramente ao ‘apocalipse do homem’?”; ao que prontamente responde negativamente: “Numa leitura mais atenta, até mesmo aqueles que, eventualmente, tornaram-se célebres polemistas, reacionários e prognosticadores da decadência do Ocidente, como Karl Kraus, em alguns casos mostraram-se profundamente esperançosos”. O próprio Huizinga corrobora a interpretação, logo nas páginas iniciais do livro:“É possível que muitos, por conta do que estas páginas encerram, venham a chamar-me de pessimista. Tudo o que tenho a responder é: sou um otimista na verdade”. Segundo Moraes, um ponto importante da argumentação de Huizinga, apresentada logo de início, “é a ideia de que o progresso – ‘expressão… que vem desaparecendo do uso linguístico corrente’, segundo suas palavras – tornou-se por fim um artigo duvidoso do credo moderno”. Para Huizinga, aponta a crítico, “o homem sempre se viu assolado pela expectativa de grandes catástrofes iminentes”, porém há uma especificidade da própria ideia moderna de crise, a saber, “a consciência de que estamos numa espécie de marcha irrefreável. Nossa época, com seus movimentos e dinâmicas distintas, encontra seu ponto de convergência numa crença unânime: ‘não há como voltar atrás, apenas seguir adiante. Eis aí o que há de inédito em nossa consciência da crise’”. Segundo o historiador, em um mundo em que não possibilidade de recuo, “é preciso continuar criando cultura para poder conservá-la”. Huizinga defende que “a distinção entre alta e baixa cultura deve ser auferida fundamentalmente não pelo termômetro intelectual, nem pelo estético, senão pelo ético e espiritual. Poder-se-ia eventualmente falar em alta cultura inclusive na ausência de uma tecnologia ou arte escultórica avançadas, porém jamais na ausência de misericórdia”. Para o historiador, “cultura é um rumo, e este aponta sempre para um ideal, para um ideal, de fato, maior do que o de qualquer indivíduo, para um ideal de comunidade”. Ainda mais porque, como pontua Moraes, Huizinga afirma que “‘toda cultura encerra uma aspiração’ – uma verdade por vezes mistificada ou dissimulada pela nossa vagueza e obscuridade na definição do conceito de democracia”. Segundo o crítico, “qualquer esperança que se fundamenta na euforia do progresso está absolutamente condenada ao colapso anunciado por Huizinga. Não se trata mais somente de uma noite escura da alma de São João da Cruz, mas da consciência histórica de um atalaia instalado na brecha entre trevas e luz e que na obra em questão cristaliza-se numa epígrafe de Bernardo de Claraval: Habet mundus iste noctes suas et non paucas – ‘este mundo tem as suas noites, e não são poucas’”.

Em 29 de outubro, Moraes publicou novo artigo, também no jornal O Estado de São Paulo, sobre Huizinga, no qual debruça-se especialmente sobre a obra Nas sombras do amanhã. O crítico comenta: “Uma marca típica do espírito historicista da época é a crença de que a distinção entre direções conservadoras e progressistas da História possa substituir a síntese religiosa como linha de demarcação para os partidos políticos. Essa sugestão, feita pela primeira vez nesse contexto pelo historiador Johan Huizinga, ganhou amplo apoio, sobretudo no Movimento Nacional Holandês. É sintomático do espírito da nossa era que essa distinção tenha origem no aspecto histórico da própria realidade, pois o ponto de vista de que a demarcação entre princípios e metas pode ser feita sobre a base desse critério histórico é plausível apenas quando se absolutiza o aspecto histórico. De fato, se Nietzsche dizia que o homem europeu encontra-se ‘doente de história’, não é menos verdade que não só a Europa, mas todo o Ocidente, morbidamente buscou no mito tanto o diagnóstico quanto a cura de sua enfermidade”. Sobre o descompasso entre o domínio da cultura e da natureza, sobretudo a humana, Huizinga questiona: “Mas e quanto ao domínio sobre a natureza humana? Não se trata dos triunfos da psiquiatria e da assistência social, nem do combate ao crime. Domínio sobre a natureza só pode significar uma humanidade que, no plano individual, domina a si mesma. Será que o faz? Ou ao menos, visto que a perfeição não lhe é concedida, será que o faz proporcionalmente ao seu espantoso domínio sobre a natureza material?”. Para Moraes, “evidentemente, a perda dessa relação (ou nível de interação) entre a cultura e a natureza culmina nos sérios paradoxos que moldam até os dias de hoje grande parte dos comportamentos tanto dos indivíduos quanto das massas. Desse modo, num dos melhores capítulos da obra, intitulado ‘O Estado lobo do Estado?’, Huizinga analisa a questão de como o Estado tornou-se, em essência, um agente amoral devido paradoxalmente a suas finalidades ‘morais’”. De acordo com o crítico, “a ironia detectada por Huizinga é justamente a transformação do Estado de, num primeiro momento, instância de salvaguarda dos direitos inalienáveis de liberdade, propriedade e vida para um domínio que age predatoriamente em relação aos outros Estados. Ademais, é curioso que o Estado moderno, burocrático e científico, tenha sido inicialmente projetado pelos ideais iluministas como uma máquina ou ferramenta para a ordenação das forças sociais (tal como a ciência iluminista era vista como a técnica de ordenação das forças naturais), mas eventualmente se tornou a fonte última de moralidade, a despeito de sua suposta amoralidade intrínseca”. Certamente, aponta Moraes, “essa tensão entre uma finalidade moral e um agente amoral caminha de mãos dadas com outro aspecto diagnosticado por Huizinga, nomeadamente, o puerilismo, ‘um estado de espírito que se poderia chamar de adolescência permanente’, que ‘caracteriza-se pela ausência das noções do adequado e do inadequado, a falta de dignidade pessoal, de respeito pelos demais ou por suas opiniões, bem como uma absorção excessiva pela própria personalidade’. Além do ‘rebaixamento dos parâmetros críticos e a atrofia da faculdade judicante’, a própria técnica contribuiu para essa ‘revolta contra a maturidade’ (R. Rushdoony), na medida em que o homem experimenta um mundo automático, de pronta e instantânea satisfação, que não raro oculta uma visão superficial dos intricados processos do mundo”.

De acordo com a pesquisadora Naiara Dos Santos Damas Ribeiro, conforme pontua no artigo “Johan Huizinga e a crítica da cultura contemporânea: um estudo historiográfico”, é sobretudo na década de 1930 “que se pode observar a maturação de Huizinga como crítico da cultura contemporânea […] há uma reelaboração das suas problemáticas que passam a tratar da ‘crise da cultura ocidental’. Huizinga atribui as causas dessa crise a uma cultura de massas emergente e tenta buscar, através de seus estudos, os valores tradicionais da cultura européia”. É neste contexto que são publicados os livros Nas sombras do amanhã e Homo Ludens [Perspectiva, 2014], publicado em 1938. Ribeiro cita o historiador Ernst Gombrich, para quem a unidade entre a obra de Huizinga como historiador e como crítico cultural reside “na existência de um problema comum que permeia toda a sua obra: o problema do limite entre o jogo e o sério. Apresenta-se aqui a questão que foi fundamental na forma como Huizinga construiu sua interpretação em torno das realidades passadas e do presente: o elemento lúdico da cultura”. A perda do elemento lúdico, que Huizinga explicita em Homo Ludens, segundo Ribeiro, “havia assinalado o fim da verdadeira civilização, uma vez que para esta existir de forma autêntica, na visão de Huizinga, era necessário que o lúdico estivesse imbuído das normas prescritas pela razão, pela humanidade e pela fé”. Em 1935, quando lançou Nas sombras do amanhã, Huizinga foi convidado por Fritz Saxl para proferir uma conferência no Instituto Warburg a respeito do elemento lúdico da cultura; de acordo com Ribeiro, tal interesse, “revelado por Huizinga em resposta a Saxl, pelo elemento lúdico da cultura ganha o peso de valor essencial da cultura. Esse elemento já estava presente em outras de suas obras, essencialmente em O Declínio da Idade Média, e, em sua compreensão, estava eminentemente marcado por valores éticos e morais. Era o lúdico que tornava a aspiração de beleza um dado efetivo da realidade ao tornar esse ideal a vivência concreta de um ‘nobre jogo”. Todos esses elementos – a ética, a moral e o lúdico – já estavam colocados em suas obras anteriores. Contudo, a partir de 1926, e, sobretudo na década de 30, essas problemáticas ganham maior relevo, marcando, assim, efetivamente, uma inflexão na trajetória intelectual desse historiador. O que antes tinha apenas o caráter de livre esboço, ganha, em 1935, com Nas Sombras do Amanhã, fortes traços. E é acrescido ainda por um outro valor fundamental: o aspecto religioso integrado com a noção ética. Nesse livro, Huizinga se propõem a construir, como enuncia claramente o subtítulo, um diagnóstico da enfermidade espiritual do seu tempo. Ele inicia o seu texto com a frase: ‘vivemos num mundo dementado’. O mundo para ele havia perdido a razão, perdido a capacidade de julgar, e, o mais ameaçador, rompido com a tradição da Velha Europa. Todos os valores antes considerados sagrados e imutáveis como a verdade e a humanidade, a justiça e a razão, haviam se tornado incertos. O desastre era então iminente; contudo, para Huizinga, havia ainda motivos para a esperança e esta estava no esforço de resgatar as velhas tradições da civilização ocidental”. Um dos sintomas da crise que assola a cultura contemporânea, pontua a pesquisadora, é o que Huizinga denominou puerilismo: “É a perda do valor significante do jogo, que se torna um intento meramente estético sem qualquer ligação com os altos valores da ética, e a configuração de uma conduta cultural própria do adolescente. Para este historiador, houve uma confusão entre as fronteiras do jogo e da seriedade, o que culminou na falta de respeito pelo outro e numa excessiva concentração sobre sua própria personalidade. Contudo, mesmo que o livro Nas Sombras do Amanhã esteja permeado de metáforas negativas como ‘demência’ e ‘enfermidade’, Huizinga constrói suas considerações finais sobre um registro de esperança. Ele parte do diagnóstico para estabelecer a cura. Cura esta que tem sua fundamentação na catarse da civilização ocidental a partir da regeneração interior do indivíduo e na restituição do sentimento de responsabilidade humana. O homem deve querer ser mais do que um animal argumenta Huizinga, e nisso está à base da cultura. E a condição de ser humano pressupõe o reconhecimento de verdades eternas e universais; portanto, o redimir-se da civilização estaria num regresso, numa reconquista do senso e da virtude”.

Escrito pela erudita pena de “um Erasmo de tempos sombrios”, como o definiu Otto Maria Carpeaux, Nas sombras do amanhã volta às livrarias brasileiras quase setenta anos após sua última versão, publicada pela Editora Livraria Acadêmica. Para a felicidade dos leitores, que ganham aqui mais alguns importantes instrumentos para refletir sobre as sombras de hoje.

 

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.Trecho.

 

Todos os arautos de tempos melhores – reformadores e profetas, os adeptos e teóricos das renascenças, restaurações, despertares – sempre aludiram às glórias passadas, exortaram ao retorno, à reabilitação de uma antiga pureza. Humanistas, reformistas, moralistas da Roma imperial, Rousseau, Maomé, e mesmo os profetas de tribos centro-africanas: todos tinham os olhos voltados para um passado supostamente superior ao presente, e apregoavam o retorno àquele tempo… E é plausível que uma civilização posterior, recuperando certas características, cuja perda ora lamentamos, se reaproxime de épocas anteriores. Mas de uma coisa estamos certos: um completo retorno é impossível.

 

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NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

Autor: Johan Huizinga
Editora: Editora Caminhos
Preço: R$ 50,00 (224 págs.)

 

 

 

 

 

 

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