Resenhas

A caminhada como transformação (Parte I)

10 agosto, 2020 | Por Tânia Gomes Mendonça

Uma reflexão sobre A estrada que não levava a lugar algum, de Gianni Rodari

Tânia Gomes Mendonça

 

“Na saída do vilarejo,
abriam-se três estradas:
uma seguia em direção ao mar,
outra, em direção à cidade
e a terceira não levava
a lugar nenhum”.

Assim se inicia o conto do escritor Gianni Rodari, A estrada que não levava a lugar nenhum, publicado em formato de álbum ilustrado em 2016, pela Editora 34, com ilustrações de Sandra Jávera e tradução de Glória Kok. Já nesta primeira página da obra, nos deparamos, na imagem, com uma estrada principal que se bifurca em três. Qual seria a estrada que não leva a lugar algum? Por que, então, ela existiria?

E eis que, ao virarmos a página, conhecemos o protagonista da história: o menino Martim, o qual havia indagado a quase todos do lugar onde vivia acerca da misteriosa estrada, sempre recebendo a mesma resposta: esta não levava “em parte alguma”. Mas o garoto, curioso, não se contentava com esta provável certeza do vilarejo. Assim, insistia: “como vocês podem saber, se nunca estiveram lá?”. Com isso, devido à sua obstinação, passaram a chamá-lo de Martim Cabeçadura. E, enquanto a narrativa se espalha no decorrer das páginas, as ilustrações, em tons azulados, oferecem as nuances e as curvas da estrada tão instigante.

Um dia, então, Martim decide caminhar pela estrada que não levava a lugar algum. Desse modo, o narrador do conto nos guia por entre os elementos que o menino encontra em sua andança. E os tons das ilustrações, pouco a pouco, transformam-se, de azuis, para rosas. Finalmente, o garoto chega a um portão de ferro, a partir do qual pode avistar um castelo, “com todas as portas e janelas abertas”.

Martim entra pelo portão, atravessa o jardim e, no salão do castelo, encontra-se com uma bela e alegre mulher que descia as escadas:

“- Então você não acreditou!
– Não acreditei em quê?
– Na história da estrada que não levava a lugar algum.
– Era boba demais. Além disso, para mim existem mais lugares do que estradas.
– Claro, é só ter vontade de caminhar. Agora venha, quero que você conheça o castelo”.

Assim, o escritor nos conduz pelas maravilhas encontradas pelo menino Martim, incitando o leitor que, curioso, passa a se perguntar sobre como o conto se resolverá. Portanto, a estrada e, mais do que este elemento, a caminhada, nos guia por esta fábula que flerta com os contos maravilhosos, mas que possui um desfecho moderno – no qual a iniciativa engajada de uma personagem é fundamental para a resolução do enredo.

Caminhar por uma estrada desconhecida – com toda a carga simbólica que esta ação pode conter – seria, desse modo, um atrevimento recomendado por um dos escritores italianos da literatura infantil mais reconhecidos da modernidade.

Gianni Rodari nasceu em 1920, numa pequena cidade italiana, Omegna. Quando tinha 17 anos, formou-se como professor no magistério, passando a dar aulas para crianças nas escolas rurais em volta da cidade de Varese. Rodari vivenciou intensamente os horrores da Segunda Guerra Mundial: apesar de ter sido dispensado do serviço militar devido a problemas de saúde, seu irmão Cesare foi preso num campo de concentração nazista. Além disso, os dois melhores amigos de Rodari acabaram morrendo durante o conflito. Estes eventos marcaram a trajetória do escritor, que se filiou ao Partido Comunista Italiano em 1944, atuando no movimento de Resistência.

Rodari começou a escrever para crianças em 1948, quando trabalhava como jornalista no periódico comunista L’Unità. Em 1962, escreveu o livro Fábulas ao Telefone, obra na qual se encontra o conto A estrada que não levava a lugar algum.

Em 1970, recebeu o prêmio Hans Christian Andersen de literatura infantil, reconhecido como o mais fundamental de todos desta categoria. Em seu discurso de agradecimento, ressaltou a importância das fábulas:

“Acredito que as fábulas, tanto as velhas quanto as novas, podem ajudar a educar a mente. A fábula é o lugar de todas as hipóteses: ela pode nos dar as chaves para entrar na realidade por novos caminhos, pode ajudar a criança a conhecer o mundo…”.
(Grifo nosso. Citação de Fábulas por telefone, p. 215).

As fábulas, portanto, para Rodari, nos apontariam para novos caminhos, os quais, quem sabe, seriam tão maravilhosos quanto o destino de Martim ao andar pela estrada que não levava a lugar algum.

No conto aqui ressaltado, Gianni Rodari parece nos conduzir pela simbologia da caminhada enquanto ação revolucionária, transformadora, dando ênfase, ainda, à importância do pioneirismo, da desobediência como atitude de renovação.

Esta metáfora da caminhada como ato político também se encontra nas representações de movimentos revolucionários contemporâneos, como nos contos do Subcomandante Marcos, um dos porta-vozes do Exército Zapatista de Libertação Nacional, localizado no México.

Em sua obra Relatos del viejo Antonio, na qual o Subcomandante Marcos oferece a voz ao seu mentor, o indígena velho Antonio, sabedor das tradições da cultura de seu povo, conhecemos histórias dos “homens e mulheres verdadeiros”:

“[…] esta bola que é o mundo não é mais que a luta e os caminhos dos homens e mulheres verdadeiros, caminhando sempre, querendo sempre que o caminho lhes saia melhor que os passos que caminham. Caminhando sempre não têm nem princípio nem fim em sua caminhada. […]. Sempre querem alcançar a si mesmos, surpreender-se por trás para encontrar o princípio e assim chegar ao final de seu caminho. Mas não vão encontrá-lo, sabem disso e não lhes importa. O único que lhes importa é ser um bom caminho que trata sempre de ser melhor”.
(Tradução nossa a Relatos de El Viejo Antonio [México, 1998], p. 114).

Gianni Rodari, com esta fábula, A estrada que não levava a lugar algum, parece fazer parte de uma tradição revolucionária que extravasa os discursos do Partido Comunista Italiano e ressurge na reapropriação de histórias narradas por indivíduos de culturas indígenas latino-americanas, as quais são ressignificadas por movimentos políticos horizontais, como esta narrada pelo Subcomandante Marcos. No entanto, enquanto Rodari institui um maravilhoso castelo como o provável ponto final da estrada caminhada por Martim, o caminho atravessado pelos “homens e mulheres verdadeiros” não possui nem começo nem fim, sendo, portanto, o próprio trajeto enquanto processo o ato mais significativo da história.

Mas, o que nos parece mais interessante ao observarmos o conto de Gianni Rodari, é que a sua estrutura não possui uma mensagem explícita, oferecendo uma visão da infância como um momento de indagações instigantes e de projeção crítica. As crianças, desse modo, seriam capazes de pensar sobre as suas experiências de forma tão profunda quanto os adultos. Rodari nos aponta, portanto, uma infância como possibilidade de conformação de novos horizontes, como revolução questionadora.

Ou, como nos anuncia o próprio escritor no mesmo discurso mencionado anteriormente, “é possível falar com os homens mesmo falando sobre gatos, e é possível falar de coisas sérias e importantes mesmo contando fábulas alegres”.

 

 

A ESTRADA QUE NÃO LEVAVA A LUGAR NENHUM

Autor: Gianni Rodari
Ilustradora: Sandra Jávera
Editora: 34
(36 págs.)

 

 

 

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