história

Escatológico e histórico

5 maio, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Gustave Doré

Novo lançamento de Giorgio Agamben no Brasil, O mistério do mal reflete sobre a renúncia do papa Bento XVI, interpretando-a através de uma articulação teológica e política, ao mesmo tempo que escatológica e histórica. O filósofo italiano encontra, sob sua análise, a problematização da crise da sociedade e das instituições contemporâneas, na qual é ponto crucial uma confusão entre legalidade e legitimidade. Sua reflexão também recai sobre o atual papel da Igreja. 

O livro reúne dois ensaios. No primeiro, “O mistério da Igreja”, Agamben examina o significado do gesto de Bento XVI, pensando-o à luz de algumas ideias de Ticônio, teólogo donatista do século IV cuja doutrina teria influenciado fortemente santo Agostinho em sua concepção das duas cidades, dos homens e de Deus. O segundo texto, “A história como mistério”, é a transcrição de uma conferência que o autor proferiu na Suíça, em novembro de 2012, quando recebeu o título honoris causa em teologia.

No início do volume, o autor explica ao leitor a relevância da publicação de ambos textos lado a lado, por tratarem no fundo da mesma questão: o “significado político do tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há vinte séculos”.

O livro é composto ainda por um elucidativo Apêndice, no qual Agamben reproduz os textos que fundamentam sua interpretação: a “Declaração de Celestino V” (1215-1296), o outro papa que entrou para a história por ter renunciado ao cargo; a “Declaração de Bento XVI” – ambos em versão bilíngue, latim-português –; a segunda e a sétima regras do Liber regularum de Ticônio, respectivamente, “O corpo bipartido do Senhor” e “O diabo e seu corpo”; o capítulo XIX do Livro XX de A cidade de Deus, de santo Agostinho, dedicado ao comentário da Segunda epístola aos tessalonicenses, do apóstolo Paulo.

A inspiração para a interpretação de Agamben sobre a “grande recusa” de Bento XVI é um artigo escrito quando este, então o teólogo Joseph Aloisius Ratzinger tinha 30 anos, em 1956: “Considerações sobre o conceito de Igreja de Ticônio no Liber regularum”. O texto evidencia a consciência de que o bem e o mal são intrínsecos à própria Igreja e de que o mistério está na história, ainda que a ultrapasse. Agamben compreende, a partir do artigo, que o gesto da renúncia, anos depois, teria sido um ato de coragem; pois sua decisão mostra de modo radical a necessidade de que a Igreja assuma sua responsabilidade, histórica e messiânica, e, ao mesmo tempo, põe em questão a legitimidade dessa instituição que “persegue com obstinação as razões da economia e do poder temporal”.

A análise de Agamben passa pela distinção dos dois princípios políticos fundamentais que norteiam a discussão, a legitimidade e a legalidade, e demonstra de que maneira a atitude do papa Bento XVI afeta toda a sociedade, não só porque coloca em discussão a legalidade das instituições, mas também por questionar a sua legitimidade. Para o filósofo italiano, não é por estarem deslegitimados que os poderes e as instituições atualmente encontram-se na ilegalidade; o que ocorre é o inverso, a ilegalidade é tão generalizada que os poderes perderam a consciência de sua legitimidade. Por isso, escreve o autor, é errado acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio de ação, ainda que necessária, do poder judiciário, pois “uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito”. Para Agamben, a tentativa moderna de equiparar legalidade e legitimidade é – além de resultado do interminável processo de decadência em que entraram as instituições democráticas – totalmente ineficiente, uma vez que as instituições de uma sociedade se mantém vivas somente se estes princípios continuam presentes e atuando separadamente.

O gesto de Bento XVI é revolucionário, uma escolha doutrinária, pensativa e penosa, tomada em função da situação dramática pela qual passa a Igreja. Sua decisão radical reinicia a máquina política e enfatiza a ideia de justiça e legitimidade. Agamben encontra aí uma analogia à profunda crise pela qual passa também a sociedade, pois, diz, a decadência das nossas instituições democráticas atesta o fracasso da tentativa da modernidade de fazer coincidir legalidade e legitimidade.

No artigo “Crise de legitimidade”, publicado por ocasião do lançamento do livro no blog da editora, Agamben diz [o artigo é traduzido por Moisés Sbardelotto]:

“A renúncia de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que traga no coração o destino político da humanidade. Realizando a “grande recusa”, ele deu provas não de covardia, como Dante escreveu talvez injustamente sobre Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares. […]

“Por que essa decisão nos parece exemplar hoje? Porque ela chama novamente com força a atenção para a distinção entre dois princípios essenciais da nossa tradição ético-política, dos quais as nossas sociedades parecem ter perdido toda consciência: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a nossa sociedade está passando é tão profunda e grave é porque ela não põe em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade; não apenas, como se repete frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas também o princípio mesmo que o fundamenta e legitima”. […]

“Por isso, o gesto de Bento XVI é tão importante. Esse homem, que estava à frente da instituição que exibe o mais antigo e significativo título de legitimidade, revogou em questão com o seu gesto o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que se esquece totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível: isto é, renunciando ao exercício do vicariato de Cristo. 

“Desse modo, a própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz. Não sabemos se a Igreja será capaz de tirar proveito dessa lição: mas certamente seria importante que os poderes laicos aproveitassem a oportunidade para se interrogarem novamente sobre a sua própria legitimidade”.

Traduzido por Patricia Peterle e Silvana de Gaspari, o livro foi publicado pela Boitempo.

 

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“É inútil acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito. A hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao invés, trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial”.

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agamben

 

O MISTÉRIO DO MAL – BENTOXVI E O FIM DOS TEMPOS

Autor: Giorgio Agamben
Editora: Boitempo
Preço: R$ 20,30 (80 págs.)

 

 

 

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