A filósofa Marilena Chaui, nos ensaios publicados neste mês pela editora Autêntica em coedição com a Fundação Perseu Abramo, reflete sobre o sentido d’A ideologia da competência. Ao longo do livro, a autora identifica uma nova classe trabalhadora, constituída no cenário brasileiro em meio ao avanço de políticas econômicas e sociais democráticas que, sob as condições impostas pela economia neoliberal, acabaram por difundir tanto a ideologia da competência quanto a racionalidade do mercado. Analisando o sentido desta ideologia, Chaui constitui uma gênese do conceito, desde a regulação fordista até o avanço do neoliberalismo, concentrando sua análise em duas instituições: a universidade e a indústria cultural. Sua indagação, amparada pelo uso erudito de boa parte do história da filosofia, perscruta o mais profundo sentido do que é o político e identifica uma modernização do autoritarismo no Brasil. Um livro de combate, que mostra a força e o perigo de ideologias que, colocadas como míticas verdades universais, são fruto de construções sociais ao mesmo tempo que ferramentas de sua manutenção.
A autora aponta que o fordismo autorizou um poder de mando e comando enquanto produção racional, capaz de afirmar a irrelevância da discussão sobre os fins de uma ação ou prática, subtraída pelo simples estabelecimento de meios eficazes para a obtenção de um objetivo. O poder passa a estar sob domínio unicamente do mercado, que não só gera suas leis, mas que forma especialistas visando o desenvolvimento de tecnologias, que por sua vez contribuem para o aumento da divisão social. Assim, a própria “ideologia da competência” torna-se um instrumento da dominação, pois por sua lógica as pessoas passam a ser analisadas e hierarquizadas de acordo com o que podem produzir – passam a ter um valor extrínseco, em detrimento de sua capacidade intelectual, de seu valor intrínseco.
De acordo com Clebson Marcelo Cordeiro, em artigo: “Esta ideologia subjuga o ser humano, retirando dele todas as suas qualidades e mostrando apenas seus defeitos, então assim surgem também os competentes em áreas psicológicas, nutricionais, os consultores da boa etiqueta, moda, entre outros. Tudo isto faz que entendamos que a Ideologia não tem história, mas fabrica histórias, são espetáculos que surgem em espaço e tempo diferentes um do outro. E que esses espetáculos são sempre interpretados e narrados pelos vencedores, ou seja, pelos poderosos. Por essa razão não temos registros de como a classe social mais baixa interpretava os espetáculos, e como interagiam com eles”.
Enquanto princípio de organização das universidades, a ideologia da competência, adaptada pela estrutura autoritária e hierarquizada da sociedade brasileira, justifica a estrutura social vigente e, portanto, sobretudo contribui para sua reprodução inerte, sem qualquer transformação de base. A partir dessa constatação, a filósofa revê o discurso modernizador neoliberal, mostrando que, longe de promover a democratização da sociedade brasileira, ele autoriza a dominação tecnocrática autoritária que se iniciara com a “modernização conservadora” da ditadura.
Já na análise da indústria cultural, Chaui desmascara-a enquanto formadora de sujeitos narcisistas, incapazes de exercer cidadania democrática e construir um espaço público de debates e ações políticas. Esta programação cultural cria indivíduos incapazes de avaliar o que seja público, pois seus critérios da vida seguem os moldes daqueles da vida privada das classes senhoriais: são sujeitos-consumidores, absortos, quer no narcisismo ou na depressão, e que confiam aos profissionais que julgam competentes o poder de decidir sobre política, cultura, paradigmas da vida profissional, ou mesmo formas de lazer. Sob a imagem da “sociedade de conhecimento”, a indústria cultural contemporânea instaura um processo de controle de internautas e telespectadores, seus servidores voluntários. Chaui identifica um processo de fragmentação social que é próprio das décadas da “acumulação flexível”.
Segundo a autora, em artigo para livro 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma (organizado por Emir Sader, publicado pela Boitempo, no ano passado), conforme divulgado pela Carta Maior, os governos de Fernando Henrique Cardoso tornaram hegemônico o modelo neoliberal “ao realizar a chamada reforma e modernização do Estado, isto é, a adoção do neoliberalismo como princípio definidor da ação estatal (privatização dos direitos sociais, convertidos em serviços vendidos e comprados no mercado, privatização das empresas públicas, direcionamento do fundo público para o capital financeiro etc.). Para legitimar essa decisão política, foram mobilizadas as duas grandes ideologias contemporâneas: a da competência e a da racionalidade do mercado. A ideologia da competência afirma que aqueles que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os que supostamente são ignorantes, de tal maneira que a divisão social das classes aparece como divisão entre dirigentes competentes e executantes que apenas cumprem ordens. Essa ideologia, dando enorme destaque à figura do “técnico competente”, tem a peculiaridade de esquecer a essência mesma da democracia, qual seja, a ideia de que os cidadãos têm direito a todas as informações que lhes permitam tomar decisões políticas porque são todos politicamente competentes para opinar e deliberar, e que somente após a tomada de decisão política há de se recorrer aos técnicos, cuja função não é deliberar nem decidir, mas implementar da melhor maneira as decisões políticas tomadas pelos cidadãos e por seus representantes. Por sua vez, a ideologia neoliberal afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo enquanto o espaço privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o mercado portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se consolidou no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade significava apenas três coisas: enxugar o Estado (entenda-se: redução dos gastos públicos com os direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir os interesses da finança nacional e internacional”.
O livro A ideologia da competência abre com uma entrevista, “bombástica”, concedida em 1999 à revista Caros Amigos, na qual Chaui conta sua trajetória acadêmica e política, e demonstra as razões de sua crítica à orientação neoliberal do governo de FHC. No ensaio que dá nome ao volume, publicado originalmente na antologia O que é ideologia (1981), ela analisa a história da ideologia burguesa e interroga sobre as peculiaridades de seu funcionamento. Em “Ventos do progresso: a universidade administrada”, reflete sobre o sentido da reforma universitária feita à sombra do AI-5, traçando um reflexão sobre a infiltração da ideologia da competência na organização das escolas e universidades. O tema continua a ser desenvolvido em outro ensaio, intitulado “Ideologia neoliberal e universidade”. Em “Contra o discurso competente”, a filósofa analisa a cobertura midiática da morte de Elis Regina. No ensaio “O pacote competente”, ela esmiúça o discurso economicista dos “políticos” e administradores que passaram o pacote econômico em junho de 1983 sob pressão cerrada do FMI. Há também um interessante texto, “Simulacro e poder: uma análise da mídia”, no qual Chaui desenvolve uma análise minuciosa dos processos pelos quais o neoliberalismo, nas últimas décadas, conseguiu colonizar os desejos e a subjetividade de telespectadores e internautas, estabelecendo-se enquanto hegemonia internacional. Em “Cibercultura e o mundo virtual”, há considerações sobre os aparelhos digitais, a cultura cibernética e os processos sociais que resultaram da destruição sistemática da esfera pública pela transformação dos sujeitos sociais e políticos em individualistas consumidores de cultura cibernética. Entre as novas reflexões da filósofa contidas neste volume, há considerações sobre a chamada “Primavera Árabe” e sobre as manifestações de junho de 2013 no Brasil. Na “Carta aos estudantes”, escrita em 2005, ela denunciou a organização, por parte da grande mídia brasileira, do “golpe branco” contra o governo Lula.
Organizado por André Rocha, este livro é o terceiro volume da coleção da editora Autêntica, “Escritos de Marilena Chauí”, que é integrada também pelos títulos Contra a servidão voluntária (volume 1, organizado por Homero Santiago) e Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro (volume 2, organizado por André Rocha).
A editora Autêntica disponibiliza uma visualização do livro.
Autor: Marilena Chaui
Editoras: Autêntica e Fundação Perseu Abramo
Preço: R$ 41,00 (224 págs.)