O argentino Juan Gelman é considerado um dos mais importantes poetas de língua espanhola. Faleceu em janeiro deste ano, com 83 anos de idade, deixando uma poesia excepcional. Ganhou o Prêmio Cervantes, o mais importante da literatura em língua espanhola, em 2007, pelo “compromisso com a realidade” que sua obra honra, integrando, em seu pensamento poético, a “sua terrível história pessoal”.
Isso é uma das raras publicações de sua poesia no Brasil, livro traduzido por Leonardo Gonçalves e Andityas Soares de Moura e publicado há dez anos pela editora da UNB, como parte integrante da boa coleção Poetas do mundo. Não se trata de uma coletânea; o autor o havia publicado sob o título Interrupciones II, reunião, além deste, também dos livros Bajo la lluvia ajena (notas al pie de una derrota), Hacia el sur e Com/posiciones.
No nosso mercado editorial foram publicadas mais algumas edições da poesia de Juan Gelman: a antologia Amor que serena, termina?, com tradução de Eric Nepomuceno; Com/posições, traduzido por Andityas Soares de Moura. Além destas, também o livro Dibaxu/Debajo/Debaixo, traduzido por Andityas Soares de Moura e publicado pela Universidade Federal do Ceará, livro que trazia 29 poemas amorosos escritos na língua dos judeus da península ibérica, o sefardita. E a coletânea, publicada pela editora Iluminuras, Poesia argentina – 1940/1960, organizada pela acadêmica Bella Jozef, apresentava dois belos poemas de Juan Gelman muito bem traduzidos. Todas essas publicações, infelizmente, encontram-se esgotadas.
Sua obra mostra uma busca pelo transcendente na linguagem, entrevista através de seu realismo crítico intimista, aventura verbal que, entretanto, não esconde seu viés político: poesia fundamentalmente crítica com o tempo que lhe é contemporâneo.
Gelman trabalhou como jornalista, colunista e tradutor, publicou textos em prosa, mas foi essencialmente um poeta – publicou mais de vinte livros de poemas. A sua lírica volta-se constantemente às coisas simples do dia-a-dia, atenta à injustiça e sensível à dor alheia. Um dos nomes que libertou a poesia latino-americana da excessiva sombra de Neruda e do seu lirismo épico e grandiloquente, Gelman foi principalmente um poeta político, ainda que o tenha sido de diferentes formas: quer militante, irônico, coloquial, ou experimental. Uma das qualidades mais marcantes de sua obra foi o caráter surpreendente que sua poesia assumiu a cada novo livro. Sua poesia, multifacetada ao extremo, manteve em polifonia uma pluralidade de vozes. Gelman criava personas, experimentava, reinventava-se linguisticamente.
Segundo os tradutores Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves, a voz de Juan Gelman “confunde esperança e dor a cada imagem recolhida nos recônditos da memória e na presença plena de ausência dos amigos idos que já não mais são nomeados. Num mar indiferente e tormentoso, no qual as ondas da memória golpeiam-lhe a escrita, Juan reencontra o mistério do ser, que se apresenta despojado de toda aura metafísica que a poesia normalmente lhe empresta”.
Como jornalista, Gelman dedicou-se a um trabalho sério de investigação e divulgação os meandros recônditos dos que humilham e ofendem o mundo. Alguns de seus textos jornalísticos podem ser lidos no blog juangelman.net.
Sua própria história foi permeada pelas atrocidades cometidas pela ditadura argentina. Na década de 60, ele integrou as Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e, posteriormente, o Movimento Peronista Montonero (MPM), na Argentina. Perseguido e ameaçado pela Aliança Anticomunista Argentina (Triple A ou AAA), Gelman viu-se forçado a exilar-se, em 1975. A “Triple A” era simplesmente um esquadrão da morte, organizado pela extrema direita, que teve forte atuação sobretudo sob o governo de Isabel Perón e cujo objetivo era desestabilizar o governo pelo assassinato de políticos e partidários da esquerda, entre artistas, intelectuais, escritores, entre outros.
Pouco tempo após ter deixado a Argentina, o poeta viu seu filho Marcelo e sua nora, a espanhola Claudia García, grávida de 7 meses, serem sequestrados por militares argentinos. Marcelo tinha 20 anos e Claudia, 19. O rapaz foi torturado e, somente depois de treze anos, seus restos mortais foram encontrados em um tambor de cimento e areia junto com outros sete companheiros. Claudia foi levada clandestinamente para Montevidéu, capital do Uruguai, onde desapareceu em 1977, após ter dado à luz uma menina no Hospital Militar. Segundo uma investigação da Comissão para a Paz, criada pelo presidente do Uruguai Jorge Batlle, Claudia foi assassinada depois do parto. A menina foi criada pela família de um policial uruguaio, que jamais revelou-lhe sua história. No ano 2000, Gelman a localizou e, desde então, ambos lutaram pelo esclarecimento da verdade.
A tragédia levou o poeta argentino a desenvolver no exílio um trabalho internacional de denúncia das violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura de seu país.
Um de seus textos políticos, sobre os campos de concentração na Argentina, foi escrito como prelúdio ao livro de Pilar Calveiro, Poder e desaparecimento, publicado no Brasil pela editora Boitempo.
_____________
“adeusadeus” dizia/sacudindo seu coração como um lenço/
“adeusadeus” dizia/
na bondade da tarde/desfolhando-se
já quase lento como uma árvore/da vereda de defronte
chegavam-lhe ânsias/desastres/vozes
que o tempo mudou/porque também há sóis e luas
em uma voz/e uma voz pode cair como a noite/
deitar/morrer tremendo de astros/levantar
cheia de sol/e os meninos da vereda de defronte
tinham uma tarde na voz/
a tarde em que ele dizia “adeusadeus” a todo mundo/
aos trens que chegam e aos trens que vão/
adeus ao coração que voa e ao vôo do coração/
adeus à árvore da tarde/
ao tempo desfolhado/
adeus ao menino que passou/
_____________
Autor: Juan Gelman
Editora: UNB
Preço: R$ 20,00 (98 págs.)