Após o lançamento de Graça Infinita, de David Foster Wallace, e as discussões a respeito da ironia de seu título, bem como da dificuldade de sua tradução para o português – Infinite Jest –, reunimos alguns textos interessantes sobre a galhofa, a bufonaria, a risada, a piada, a ironia.
Shaftesbury – Anthony Ashley Cooper, III Conde de Shaftesbury – é um daqueles filósofos cujas ideias tornaram-se freáticas; pouco comentado atualmente, desenvolveu reflexões que foram base para o desenvolvimento da filosofia moderna. O seu muito irônico Sensus communis, or na Essay on the freedom of wit and humor ainda não tem tradução para o português, porém, é fundamental para pensar as dimensões políticas, morais e estéticas do riso, do ridículo, da zombaria, do humor fino e engenhoso.
O texto é escrito em forma de carta, a um suposto amigo que ficara atônito e perturbado com a defesa, expressa por parte do autor, da zombaria. Shaftesbury explica que a zombaria pode ser justa, pois apenas pode ser considerado verdadeiro aquilo que suporta todas as luzes da verdade, inclusive o crivo do ridículo. Seguindo a tradução de Márcio Suzuki, no artigo “Quem ri por último, ri melhor”: “de acordo com a noção que tenho de razão, nem os tratados escritos do erudito, nem os discursos do orador são capazes, por si sós, de ensinar o uso dela. Somente o hábito de raciocinar pode fazer o arrazoador. E não se pode convidar melhor os homens a esse hábito do que quando têm prazer nele. Uma liberdade de zombaria, uma liberdade de questionar tudo em linguagem conveniente e uma permissão de desembaraçar e refutar cada argumento sem ofender o argüidor, são os únicos termos que de algum modo podem tornar agradáveis as conversas especulativas”. Somente uma conversa desimpedida pode proporcionar o uso pleno da razão. E o “wit”, palavra e difícil tradução para o português que significa algo como um dito espirituoso, um chiste, junto com o humor, permite uma conversa agradável e polida, na qual, Shaftesbury diz: “Em matéria de razão, mais se dá em um minuto ou dois, por meio de questão e resposta, do que por um discurso corrido de horas inteiras”. Inclusive, para o filósofo, “sem wit e humour, a razão dificilmente pode pôr-se à prova [take its proof] ou ser distinguida”.
Franklin de Matos encontra na Carta a D’Alembert sobre os espetáculos, a original teoria do riso de Rousseau. No livro O filósofo e o comediante: ensaios sobre literatura e filosofia na Ilustração, o professor mostra que Rousseau parte da ideia aristotélica sobre as artes dramáticas, segundo a qual a tragédia retrataria os homens melhores do que são, ao passo que a comédia os retrataria de maneira pior. Os admiradores do teatro argumentariam em favor da comédia apontando sua utilidade para os costumes, enquanto capaz de corrigir vícios. Rousseau contesta, afirmando que a comédia não pode corrigir os costumes, apenas retratá-los, o que a impede de qualquer correção; por outro lado, caricaturizando os costumes, abdica da verossimilhança e, portanto, também não pode corrigi-los. Rousseau diz: “A caricatura não torna odiosos os objetos, só ridículos: e daí decorre um imenso inconveniente: de tanto temer os ridículos, os vícios já não amedrontam, e não podemos curar os primeiros sem fomentar os segundos”. Segundo Franklin de Matos, esta passagem “condensa toda a concepção rousseauniana do riso. Em outros termos, o que ele diz é o seguinte: a comédia pretende ensinar a amar a virtude, mas na verdade ensina apenas a temer o ridículo; ora, o ridículo só pode ser evitado mediante o vício; portanto, a comédia caba fazendo exatamente o contrário do que pretende. Entre a intenção virtuosa do autor […] e o resultado vicioso da peça, o aparato cômico provoca uma espécie de desvio”.
Rousseau relê a teoria hobbesiana do riso para assegurar a piedade natural como fundamento último de todas as grandes virtudes sociais: o riso é efeito de uma súbita superioridade ou glorificação em relação àquele de quem se ri; é portanto momento que exclui a piedade, lisonjeando o amor-próprio. Para ele, o prazer do cômico “está fundado num vício do coração humano”, sendo, o ridículo, a arma principal do vício: pois o medo do ridículo é o medo de ser objeto de escárnio alheio, o que somente pode acontecer em vista da transgressão de certas normas prezadas por aquele que ri, as quais, portanto, para serem seguidas, implicariam necessariamente que o ridículo abdicasse de si mesmo: criaria-se uma duplicidade entre ser e parecer. A comédia incita essa duplicidade, eis a raiz de seu parentesco próximo com o vício.
Sua argumentação retoma a teoria clássica do riso para condená-lo, sob uma crítica moral e, portanto, política, uma vez que ambas são, para ele, indissociáveis. Ele mostra assim que, ao ridicularizar os vícios, o riso nos leva a temer os ridículos e não os próprios vícios. Deixa-nos submissos à opinião alheia, mal pior para o filósofo.
Vladimir Propp, em Comicidade e riso analisa o cômico, na literatura, nas artes cênicas e na pintura. O filólogo russo parte de uma definição do riso como uma reação frente a um objeto ou situação ridícula, moral, física ou intelectualmente. A comicidade, para ele, reúne tanto o cômico quanto o ridículo.
Segundo ele, nós “rimos quando em nossa consciência os princípios positivos do homem são obscurecidos pela descoberta repentina de defeitos ocultos que se revelam por trás do invólucro dos dados exteriores”. Esses defeitos ocultos podem ser fruto da comparação repentina entre diferenças e semelhanças, mera ridicularização, paródia, exagero cômico.
“O riso pode ser alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo, soberbo e cordial, indulgente e insinuante, depreciativo e tímido, amigável e hostil, irônico e sincero, sarcástico e ingênuo, terno e grosseiro, significativo e gratuito, triunfante e justificativo, despudorado e embaraçado, […] fisiológico, animalesco”.
Propp reúne, ao longo de seu livro, exemplos de expressão do humor e da comicidade extraídos de textos literários, por exemplo de Gógol, de revistas humorísticas e satíricas, folhetins publicados em jornais ou mesmo no circo, de conversas ouvidas em diferentes lugares. Ele indica falhas nas teorias sobre o humor então existentes, apontando como seu principal defeito “sua terrível e total abstração. Criam-se teorias sem qualquer relação com a realidade”. Segundo Propp, o riso está intimamente relacionado a condições de ordem histórica e social. Ele também indica a existência de certa propensão ao riso em algumas pessoas e, em outras, que possuem espíritos e pensamentos elevados e profundamente sérios, não.
Existem, de acordo com o autor, dois diferentes risos: o riso satírico e o riso humorístico, um de derrisão e o outro não. O primeiro, relaciona-se ao cômico e tem uma função de controlador social, ao passo que o segundo, um riso natural, é isento de significação ideológica ou social. Propp conclui que o aspecto de riso que mais intimamente revela a comicidade é o riso de zombaria, ligado à evidenciação dos defeitos, quer manifestos ou secretos, do objeto em questão.
O filósofo Henri Bergson, em O riso – Ensaio sobre significação e comicidade, analisa a relação entre o riso e a sociedade. Para ele, a compreensão do fenômeno do riso deve englobar três princípios: que não há riso sem humanidade, pois tanto o homem é considerado o único animal que ri, como também é o único de que se ri; que o riso supõe insensibilidade, uma vez que rir é uma operação da inteligência, que exige o bloqueio do sentimento, ao passo que a emoção não causa o riso; e que não há riso sem sociedade, uma vez que o riso é sempre de um grupo.
O livro reúne três artigos que debruçam-se sobre essas questões. Diz o filósofo, no início da publicação: “Nosso pretexto para enfocar o problema é que não pretenderemos encerrar numa definição a fantasia cômica. Vemos nela, antes de tudo, algo de vivo”.
Bergson parte de indagações como: “Que significa o riso? O que há no fundo do risível? O que haverá de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um quiproquó de vaudeville, uma cena de fina comédia?”. A compreensão do riso, para ele, passa pela compreensão da sociedade e da sociabilidade humanas. O riso deve ter uma significação social, para o filósofo.
Sua investigação levanta três leis fundamentais a que a frase cômica deve obedecer, a que chama de “transposição cômica das proposições”: a inversão, que ocorre se a frase tiver sentido mesmo invertida; a interferência, que ocorre se a frase exprimir indiferentemente dois sistemas de ideias totalmente independentes; a transposição, que ocorre se houver transposição da ideia para uma tonalidade que não é a sua. Em qualquer dessas leis, contudo, o riso serve como correção social, certa intenção inconfessa de humilhação do erro e daquele que erra.
Talvez, diz Pierre Clastres, “o interesse muito recente que suscitam os mitos corra o risco de nos levar a tomá-los muito “a sério” […] e, por assim dizer, a avaliar mal sua dimensão de pensamento. Se, em suma, deixássemos na sombra seus aspectos menos acentuados, veríamos difundir-se um espécie de mitomania esquecida de um traço todavia comum a muitos mitos, e não exclusivo de sua gravidade: o seu humor”.
O antropólogo, no texto “De que riem os índios”, publicado no livro A sociedade contra o Estado, mostra que, para apreendermos a verdade dos mitos “não devemos subestimar o alcance real do riso que eles provocam e considerar que um mito pode ao mesmo tempo falar de coisas solenes e fazer rir aqueles que o escutam”. Para Clastres, os índios possuem um senso agudo do ridículo, que os permite caçoar dos próprios temores, “desdramatizando, de certa forma, sua existência”.
Há, portanto, uma função catártica do mito: pelo riso, o mito transforma-se em instrumento de desmistificação, possibilita que se ria daquilo que se teme. O mito, assim, “desvaloriza no plano da linguagem aquilo que não seria possível na realidade e, revelando no riso um equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo mata”. Ao mesmo tempo que divertem seus ouvintes, o cômico dos mitos tem uma função pedagógica e transmitem a cultura da tribo: “o cômico dos mitos nem por isso os priva de seu lado sério. […] Eles constituem assim o gai savoir dos índios”.
O compartilhamento do riso é uma exigência da autoconstituição do homem racional. Envolve reflexão e aperfeiçoamento crítico.
Como diz Shaftesbury, na tradução, acima citada, de Márcio Suzuki: “Não pode haver visão mais disparatada [preposterous = prepóstera, contra a ordem natural] do que um executor e um palhaço [merry-andrew] fazendo seus papéis no mesmo palco. Estou, porém, convencido de que qualquer um concordará ser este o verdadeiro quadro de alguns zelotes modernos em suas controvérsias escritas. Eles não são mais mestres da gravidade do que do bom humor. O primeiro [dos debatedores] sempre corre para uma áspera severidade, e o segundo a uma desajeitada bufonaria. E assim, entre raiva e prazer, zelo e truanice [drollery], seus escritos têm muito daquela graça das brincadeiras de crianças humorosas [humoursom = ou caprichosas, mimadas], que, no mesmo instante, são irritadas e inquietas, e podem rir e gritar quase num único e mesmo respiro”.
O humor e a crítica caminham juntos.