O debate entre o polêmico filósofo esloveno Slavoj Žižek e o ortodoxo teólogo croata Boris Gunjevic, travado ao longo do livro O sofrimento de Deus – Inversões do Apocalipse, acaba de ser publicado no Brasil pela editora Autêntica, sob tradução de Rogério Bettoni.
São seis capítulos que abordam o cristianismo, o islã e o judaísmo através de análise hegeliana e lacaniana, de um lado, agostiniana, por outro, que estruturam um panorama da maneira como cada sistema religioso entende a humanidade e a divindade, e que mostram a dimensão de suas diferenças.
Os debatedores traçam uma investigação crítica, não um texto religioso. Com a habilidade de articulação que lhe é peculiar, Žižek propõe conexões improváveis, questiona o suposto ateísmo ocidental e contempla a ideia desconcertante de um “Todo-Poderoso” que sofre e ora. Gunjevic, a partir das colocações de Žižek, faz a convocação revolucionária de uma teologia que enfraqueça a astuciosa “escravização do desejo” do mundo capitalista. As discussões incluem a dualidade entre ética cristã e pagã, a “luta de classes” subentendida na leitura do Alcorão e o papel do gênero no islamismo. Juntos, eles confirmam e analisam a fé no século XX.
Trata-se de um sofisticado esforço de dar prosseguimento À compilação dos argumentos do debate sobre “a monstruosidade de Cristo”, entre Žižek e John Milbank, porém de uma perspectiva completamente diferente e instaurado em um terreno diverso. Se em A monstruosidade de Cristo [Três estrelas, 2014], o centro da discussão é o significado do cristianismo e da figura de Jesus para a história e o futuro do homem, para a consolidação de uma resistência ao niilismo capitalista, em O sofrimento de Deus, o debate insere-se no fim dos tempos – inverso ao apocalipse, pois puramente imanente. Aqui, não se procurou estabelecer uma polêmica, mas um diálogo estimulante à reflexão.
Os autores revezam-se em capítulos intercalados, de modo que o livro reproduz a paulatina construção do diálogo entre eles – ou, como dizem alguns críticos, reproduz monólogos interpostos de maneira excêntrica e desconcertantemente assimétrica –, de modo a mostrar que os horizontes mudaram recentemente e que não estamos, teologica ou paradigmaticamente, no mesmo lugar em estávamos há sequer uma década atrás.
O livro foi publicado originalmente na Croácia, em 2008. A edição brasileira foi traduzida a partir da versão publicada em Nova York em 2012. Para a nova versão, Žižek escreveu uma série de novos ensaios.
A Autêntica disponibiliza um trecho para visualização.
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.Trechos.
A mistagogia da revolução – Boris Gunjević
“A divina comédia foi escrita no exílio, um produto da vida nômade de Dante. Desse modo, não admira que a própria Comédia descreva a jornada pelo Inferno, pelo Paraíso e pelo Purgatório na companhia de viajantes incomuns que têm um significado especial para o autor. Depois de uma cisão no partido político dos Brancos, do qual Dante era membro, e de um ataque por parte dos vassalos do papa, chamados de Negros, Dante foi banido de Florença em 1302 e subsequentemente condenado in absentia à morte na fogueira. Essa sentença transformou Dante em um nômade poeta e político que jamais voltaria para sua cidade natal. Depois de perambular pela Europa, ele chegou a Ravena, onde finalmente morreu. Boccaccio diz que Dante queria descrever em vulgata, e em rimas, todas as obras de todas as pessoas e seus méritos na história. Tratava-se de um projeto notadamente ambicioso e complexo, que requeria tempo e trabalho, principalmente porque Dante era um homem cujos passos eram seguidos pelo destino a cada esquina, cercados pela angústia da amargura.
A Comédia se tornou a obra de toda a vida de Dante. Quando opositores políticos invadiram sua casa (da qual ele fugiu de repente, deixando tudo para trás), eles encontraram partes do manuscrito num baú de viagem. Esses manuscritos foram guardados e entregues ao poeta florentino mais famoso da época, Dino Frescobaldi, que reconheceu ter diante de si uma obra-prima e acabou mandando os manuscritos para Dante por intermédio de um amigo deste, o marquês Morello Malaspina – Dante estava hospedado na casa dele. O marquês incentivou Dante a persistir, e assim ele o fez. Boccaccio nos diz que a morte de Dante o impediu de terminar sua obra-prima: ficaram faltando os últimos 13 cantos. O medo dos amigos de Dante era que Deus o tivesse proibido de viver mais tempo para completar sua obra extraordinária. Toda a esperança de recuperar os cantos finais se perdeu.
Os filhos de Dante, Jacopo e Piero, também poetas, concordaram em completar a Comédia do pai. Uma noite, oito meses depois da morte de Dante, Jacopo teve um sonho estranho. O filho perguntava para o pai se ele havia terminado a grande obra e queria saber onde estavam escondidos os últimos cantos. Dante respondeu que sim, a obra estava acabada, e que ele havia guardado o manuscrito na parede do quarto. Jacopo saiu naquela mesma noite para se encontrar com Piero Giardino, discípulo de Dante durante muitos anos.
Depois de acordar Giardino no meio da noite, Jacopo não teve mais como esperar. Os dois se dirigiram imediatamente à casa de Dante para vasculhar nas paredes do quarto. Havia um tapete pendurado numa das paredes, e atrás dele havia uma pequena porta. Ao abri-la, os dois encontraram os manuscritos escondidos lá dentro, cobertos de mofo e quase destruídos. Depois de encontrar os 13 cantos, eles os entregaram a Cangrande dela Scala, amigo de Dante, para quem ele havia entregado os manuscritos em partes, à medida que escrevia.”
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“Mas eu não aposto num Deus punitivo. Aposto no Deus de São Paulo, Orígenes ou Gregório de Nissa, que no fim vai redimir a todos. Sem essa crença, não se pode ter a esperança de que um dia o ser coincidirá com o bem. Isso, na verdade, resultaria em apenas uma “moralidade” – apenas o gesto desesperador de tentar deter a morte durante um tempo. Apenas uma disputa infindável sobre como repartir recursos escassos e danificados. Em contrapartida, apenas o cristianismo permite ter a esperança de trabalhar para a realização infinita de tudo em harmonia com tudo.”
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Uma olhadela nos arquivos do Islã – Slavoj Žižek
“Tornamo-nos membros completos de uma comunidade não só por nos identificarmos com sua tradição simbólica explícita, mas também quando assumimos a dimensão espectral que sustenta essa tradição, os fantasmas que assombram os vivos, a história secreta das fantasias traumáticas transmitidas “nas entrelinhas”, por meio das lacunas e distorções da tradição simbólica explícita.”
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“Agar, como segunda mulher excluída, fora da genealogia simbólica, representa não só a fertilidade pagã (egípcia) da vida, mas também o acesso direto a Deus: ela vê o próprio Deus vendo, o que não foi concedido nem mesmo a Moisés, para quem Deus teve de aparecer na forma de sarça ardente. Como tal, Agar anuncia acesso místico/feminino a Deus (desenvolvido depois no sufismo).”
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Virtudes babilônicas: palavras da minoria – Boris Gunjević
“Como diz Santo Agostinho, os grandes reinos são apenas projeções aumentadas de pequenos ladrões. Agostinho de Hipona, entretanto, tão realista em sua ideia pessimista do poder, perderia a fala diante dos pequenos chefes do poder monetário e financeiro de hoje. De fato, quando o capitalismo perde sua relação com o valor (como medida de exploração individual e como norma de progresso coletivo), ele surge imediatamente em forma de corrupção.”
(In: Michael Hardt & Antonio Negri)
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“Ao que parece, é por esse motivo que Francisco é importante para Hardt e Negri. Com seu ascetismo simples e romântico e sua imaginação infantil, Francisco se opõe ao próprio núcleo do capitalismo, surgindo de uma maneira identificada com os mais pobres e os mais oprimidos. Este, segundo os autores, é um ato inerentemente revolucionário. Francisco desapodera a si mesmo em nome da multidão, adotando a disciplina que consiste na alegria da existência para se opor à vontade de poder e rejeitar toda forma de disciplina instrumental. Ele se afilia com toda a natureza, os animais, pássaros, o irmão Sol e a irmã Lua, em sua batalha contra a corrupção e a venalidade dos primórdios da sociedade capitalista. Em Francisco de Assis temos o símbolo da impossibilidade de se controlar a cooperação e a revolução. A cooperação e a revolução, conforme personificadas por Francisco, permanecem juntas no amor, na simplicidade, na alegria e na inocência. Tal cooperação e revolução na simplicidade são a graciosidade e a alegria irrepreensíveis de ser comunista.”
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“O homem sábio, de acordo com Proclo, progride do conhecimento para a fé, enquanto Paulo argumenta que, para os cristãos, a pessoa atinge um estado de conhecimento imediato de Deus quando tem fé, por isso a misericórdia é inerente ao conhecimento.”
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“Se aceitarmos a afirmação de Walter Benjamin de que o capitalismo é uma religião, a crítica mais radical – na verdade a única crítica possível e plausível – do capitalismo não seria articulada pela religião?”
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Apenas um Deus que sofre pode nos salvar – Slavoj Žižek
“Isso nos leva à terceira posição, que vai além das duas primeiras (o Deus soberano e o Deus finito): a de um Deus que sofre – não um Deus triunfalista que sempre vence no final, embora “seus caminhos sejam misteriosos”, uma vez que ele controla tudo em segredo nos bastidores; não um Deus que exerce a justiça fria, uma vez que, por definição, ele está sempre certo; mas sim um Deus que – como o Cristo que sofre na cruz – está atormentado, um Deus que assume o fardo do sofrimento em solidariedade à miséria humana. Schelling já havia escrito: “Deus é uma vida, não apenas um ser. Mas toda vida tem um destino e está sujeita ao sofrimento e ao devir. […] Sem o conceito de um Deus que sofre humanamente […] toda a história permanece incompreensível”. Por quê? Porque o sofrimento de Deus indica que ele está envolvido na história, é afetado por ela, e não é apenas um Mestre transcendente que controla tudo lá de cima: o sofrimento de Deus significa que a história humana não é apenas um teatro de sombras, mas sim o lugar de uma luta real, a luta em que o próprio Absoluto está envolvido e em que seu destino é decidido. Esse é o pano de fundo filosófico da forte observação de Dietrich Bonhoeffer de que, depois da Shoá, “apenas um Deus que sofre pode nos ajudar” – um complemento perfeito para “Apenas um Deus pode nos salvar!”, de Heidegger, dita em sua última entrevista. Desse modo, deve-se interpretar de maneira bastante literal a declaração de que “o sofrimento inominável de seis milhões também é a voz do sofrimento de Deus”: o próprio excesso desse sofrimento em relação a qualquer medida humana “normal” o torna divino.”
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Autores: Slavoj Žižek e Boris Gunjevic
Editora: Autêntica
Preço: R$ 39,84 (240 págs.)