Últimas

Cinema como expressão sociológica

20 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
cena de "Viramundo". filme de Geraldo Sarno

cena de “Viramundo”. filme de Geraldo Sarno

O documentário, como qualquer forma de cinema, adapta-se por um lado à concepção do diretor e, por outro, à captação da realidade, posicionando-se como articulação entre ambas as forças. A subjetividade intrínseca à forma documental é uma das questões levantadas por Jean-Claude Bernardet no interessante Cineastas e imagens do povo.

O livro foi publicado originalmente em 1985 e, em 2003, reeditado em forma ampliada pela Companhia das Letras. Sua análise abrange a interpretação de mais de trinta documentários de curta-metragem brasileiros produzidos das décadas de 1960 a 1980. Seu foco são as questões ideológicas e estéticas enfrentadas pelos cineastas citados ao abordarem o tema popular, a imagem do povo.

Jean-Claude Bernardet, crítico, professor, pesquisador e cineasta, analisa a própria linguagem dos filmes para pensar sobre as escolhas, morais e estéticas, para a representação do povo no cinema brasileiro. O autor interpreta, entre outros, filmes como Viramundo, de Geraldo Sarno, ABC da greve, de Leon Hirzman, Opinião pública, de Arnaldo Jabor, Aruanda, de Linduarte Noronha, Porto de Santos, de Aloyisio Raulino, Greve, de João Batista de Andrade, e Subterrâneos do futebol, de Maurice Capovilla. Sua análise também contempla filmes que se relacionam com os documentários analisados, como Barravento e Terra em transe, de Glauber Rocha, Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade, Memórias do cárcere e Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos. A reedição ampliada inclui novos ensaios, entre eles, sobre Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, Os anos JK, de Sílvio Tendler, O homem que virou suco, de João Batista de Andrade.

Trata-se de uma análise ética do cinema como expressão sociológica e epistemológica. Jean-Claude, analisando a raiz da narrativa documental, coloca em questão o que define como “modelo sociológico”, representação em que o universo popular é mostrado a partir de uma voz narradora, que, reafirma o saber sobre o outro, de modo a reduzir a nada a própria expressão deste outro.

Segundo Fernão Pessoa Ramos, professor de história e teoria do cinema da Unicamp, em resenha escrito ao jornal Folha de São Paulo, o livro: “Sofisticado metodologicamente, traz para a escrita do texto o desafio que apresenta para os cineastas. Como escapar do questionamento do saber, implícito na dialética do particular/geral, que o próprio livro estabelece para seu objeto? A saída proposta tem a ver com uma forma de análise, presente não apenas no campo cinematográfico (a análise estrutural), mas que nessa área teve uma profunda influência na academia: a análise fílmica”. Ramos, porém, faz uma ressalva quanto à restrição imposta pelo enquadramento analítico tomado de maneira muito metódica: “A análise fílmica não dá conta do horizonte histórico, fazendo com que o eixo “evolutivo” que o livro estabelece na representação do “outro de classe”, passe a ocupar um lugar excessivo. O fato de a representação manter a voz off tradicional do classicismo documentário, na forma de um saber sociológico, pode significar pouco se inserirmos filmes como “Viramundo” e principalmente “Maioria Absoluta” no contexto de afirmação do cinema direto que atinge em cheio os jovens do Cinema Novo”.

A partir da década de 1950, os documentários de curta-metragem, sobretudo os do Cinema Novo, deixaram de ser experimentos prévios às produções de longa-metragem, assumindo viés crítico e um posicionamento frente a problemas sociais.

Com a intensa crise do “modelo sociológico” no início dos anos 60, o cinema preocupado tanto com os problemas sociais quanto com as questões de sua linguagem, pode desenvolver novas formas narrativas que abarcassem a complexidade do investimento ideológico e estético do cinema que propunham.

Lendo a transformação da linguagem do documentário, o autor levanta os elementos expressivos significativos que possibilitaram que a câmera deixasse de mostrar o povo de maneira alheia ou, conceito fundamental que o livro desenvolve, como “outro de classe”, e passasse a mostrá-lo de maneira mais próxima – como diz Fernão Pessoa Ramos, de modo a ver que “o outro somos nós” –, problematizando a posição do sujeito que enuncia a representação.

Bernardet publicou, entre outros, também pela Companhia das Letras, Cinema brasileiro: propostas para uma história, que, editado originalmente em 1979, tornou-se um clássico. Livro breve, ousado e original, que analisa a inserção do cinema no cenário cultural brasileiro, do fim do século XIX, até os anos 1970.

 

bernardet

 

CINEASTAS E IMAGENS DO POVO

Autor: Jean-Claude Bernardet
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 36,40 (320 págs.)

 

 

 

Send to Kindle

Comentários