“Os primeiros historiadores do cinema escreviam com a emoção de contemporâneos do nascimento de uma nova arte. Não somos propriamente testemunhas de sua morte, mas assistimos ao fim da conjuntura que acondicionou. Estamos na situação privilegiada de espectadores e personagens de um encerramento. Houve nascimento, desenvolvimento e morte de um cinema e seu público”.
O cinema no século, de Paulo Emílio Sales Gomes, traz uma coletânea de artigos sobre clássicos do cinema. Muitos dos textos aqui reunidos foram escritos para uma possível programação da então inciante Cinemateca Brasileira, cuja implantação foi fruto da concepção e do trabalho de Paulo Emílio.
O último capítulo traz reflexões gerais sobre o encantamento que o cinema exerceu no século XX e sobre sua tão inevitável quanto libertadora decadência. Ao longo dos outros ensaios, alguns dos cineastas que tem nesses seus trabalhos analisados são Sergei Eisenstein, Charles Chaplin, D. W. Griffith, Orson Welles, Federico Fellini e Jean Renoir. Os textos de Paulo Emílio são dotados de interpretações lúcidas e não só interessantes, como verdadeiramente esclarecedoras.
O ensaio que dá nome ao volume, “O cinema no século”, foi publicado no Jornal do Brasil, em dezembro de 1970. Nele, Paulo Emílio demarca de maneira original um campo de análise sobre a fruição e o gosto do público cinematográfico, bem como às implicações do cinema enquanto prática de consumo, desenvolvendo uma reflexão crítica sobre relações entre cinema e sociedade:
“O que o cinema atual tem de bom deriva da sua progressiva desimportância como fenômeno social. Se, em alguns países filmes políticos agudíssimos são produzidos e exibidos, é porque isso não mais importa. A mesma reflexão se aplica às audaciosas proposições morais em curso ou à irupção da linguagem experimental. Se o terreno escolhido fosse o da televisão, tudo importaria a ponto de não acontecer. Organismos privados e públicos ainda protestam e censuram fitas, mas é porque cumprem à risca a missão de confundir o ontem e o hoje. […]
“Poderia acontecer que durante os últimos 30 anos que restam ao século, o novo fenômeno cinematográfico participasse, mesmo modestamente, do pesado encargo que espera a humanidade: fazer do terceiro milênio da era cristã algo menos bestial do que foram os dois primeiros, com suas classes e guerras”.
Era sobretudo a potência social e humanista do cinema que o inspiravam. Seu trabalho analítico preocupa-se sobretudo em situar as obras em seus contextos social, político e econômico, examinando seu significado em relação ao momento histórico em que foram realizadas.
Ismail Xavier, no artigo “Paulo Emílio e o estudo do Cinema”, comenta a “perspicácia de Paulo Emílio”, a “visão totalizante da conjuntura que sempre lhe permitiu pensar o cinema dentro da cultura, inserir a reflexão sobre a imagem nas questões maiores do século”, que se fez notável “na interpretação do fenômeno cinematográfico e das relações entre história do cinema e cultura popular no Brasil”. Xavier conta, da trajetória do professor e da criação da Cinemateca Brasileira: “De volta ao Brasil, consciente de que a presença de um arquivo de filmes era condição para levar os estudos do cinema no Brasil a novo patamar, viabilizando pesquisas e a constituição de uma memória nacional, Paulo Emílio, juntamente com amigos militantes na crítica, como Almeida Salles, ou na USP, com Antonio Candido, funda a Cinemateca Brasileira. Ganha impulso, a partir daí, o trabalho de pesquisa do cinema brasileiro, mas o salto maior nesta direção se dá nos anos 60 quando ocorre a articulação entre o esforço museológico e o trabalho universitário. Nesse sentido, se Paulo Emílio, como intelectual da geração de Clima, é peça decisiva na afirmação da Cinemateca como centro formador de pesquisadores em São Paulo, seu esforço de organização do campo se consolida quando seu estilo de trabalho encontra lugar na Universidade. Ou seja, quando o que se esboçara no Clube de Cinema como experiência de estudantes da Faculdade, ainda em pleno Estado Novo, a ela retorna, nos anos 60, de Teoria Literária e Literatura Comparada. Convidado por Antônio Cândido, Paulo Emilio, a partir de 1966, orienta teses, forma pesquisadores atraídos de diferentes campos das ciências humanas e das letras. Seu poder aglutinador dá vida à pesquisa cinematográfica na USP antes que esta formalize o cinema como esfera acadêmica”.
O volume integra a recente coleção Paulo Emílio Sales Gomes, idealizada sob curadoria de Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, ex-aluno de Paulo Emílio, autor de diversos textos sobre o mestre.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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“A intenção consciente de Eisenstein era fazer ateísmo, porém o ritmo singular, com algo de dignidade e do esplendor de um ritual religioso, obtido pela montagem, e provavelmente sua fascinação latente pelo fenômeno do misticismo dão a cena uma amplidão e uma ressonância que escapam certamente dos objetivos procurados”.
– Sobre Outubro (1927), de Serguei Eisenstein.
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Autor: Paulo Emílio Sales Gomes
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 38,43 (616 págs.)