Diante do horror frente aos atentados em Paris, a filósofa Judith Butler, no próprio dia 13, escreveu, a pedido de Helder Ferreira, um preciso artigo, publicado na revista Cult [tradução de Sofia Nestrovski], no qual diz:
“As discussões televisivas que ocorreram imediatamente após os eventos parecem deixar claro que o ‘estado de emergência’, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo ‘completar’ esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o ‘islã’, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como ‘guerra’, tentou parecer másculo, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo de sua performance – tornou-se difícil, então, levar seu discurso a sério. E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército”.
Butler alerta: “A distinção entre estado e exército se dissolve em um estado de emergência”.
A discussão é delicada e pertinente, pois, como diz a filósofa, as “pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível”; por outro lado, no momento, em Paris, “não há toque de recolher instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais”.
Outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, em Estado de Exceção, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial em 2004, estuda a contraditória figura dos momentos antes “extraordinários” – de emergência, sítio, guerras – nos quais o Estado usa de dispositivos legais para suprimir os limites da sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Para Agamben, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.
O poder além de regulamentações e controle, segundo Agamben, hoje não é mais excepcional, mas o padrão de atuação dos Estados. Ironicamente, para preservar a liberdade, a lógica do estado de exceção assegura a soberania do governo – legitima a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança, a serviço da concentração de poder.
Agamben reconstitui historicamente a lógica e a teoria por trás dos estados de emergência, sua evolução e consequências, de Hitler aos prisioneiros de Guantánamo. Sua análise fundamenta-se na análise do pensamento de Carl Schmitt – autor alemão, de orientação conservadora, contemporâneo de Walter Benjamin, com quem polemizou – e seus estudos sobre ditaduras; na discussão com filósofos e teóricos do direito; na análise da biopolítica de Michel Foucault; no diálogo com Walter Benjamin, para quem o modelo de uma situação provisória que suspende a ordem jurídica, gradativamente passa a ser considerada necessária, de modo que, “naturalmente”, a exceção torna-se a regra; nas mudanças das constituições europeias e norte-americanas que levaram a instituição do estado de exceção a paradigma.
De acordo com Agamben: “A origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera; état de guerre, em que a autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar; état de siège, em que ‘todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva responsabilidade’. No entanto, esse decreto se referia apenas as chamadas praças-fortes e aos portos militares e só posteriormente, com a lei do dia 18 do frutidor do ano V é que se atribuiu o direito de declarar uma cidade em estado de sítio. A história posterior do estado de sítio é a história de sua progressiva emancipação em relação à guerra externa a qual estava ligado na origem, para ser usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando assim, de efetivo ou militar a fictício ou político. Em todo caso, é importante não esquecer que o estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático revolucionária e não da tradição absolutista”.
Segundo o professor de filosofia Douglas Ferreira Barros, em artigo publicado também na revista Cult, Agamben “não é certamente o que se entendeu em décadas passadas – como Sartre nos anos 1950 e 1960 – por um filósofo militante. Muito menos, o seu pensamento pode ser localizado entre os que pretendem renovar o cânone marxista. Ele se filia à tradição crítica do marxismo contemporâneo por influência do filósofo alemão Walter Benjamin. Também, a sua abordagem de problemas centrais da política contemporânea deita raízes nas filosofias críticas do século 20, que estudam o modo de legitimação social de estruturas de poder singulares, tanto em sua forma, no caso da obra de Michel Foucault, quanto na forma e no conteúdo, no caso da análise dos totalitarismos feita por Hannah Arendt”. As reflexões desenvolvidas ao longo da obra de Agamben, diz o professor, envolvem temas relevantes como “a análise das consequências da atuação dos biopoderes sobre a vida dos indivíduos, fator determinante para que entendamos as relações entre o poder soberano e o modo de gestão calculista e controlada da vida. A advertência lançada quanto ao perigo de o ‘estado de exceção’ se constituir a norma do jogo democrático, nas suas mais distintas formas, é um dos alvos para onde devem mirar as críticas dos militantes e dos políticos que se identificam com o ideário da esquerda. […] pois, lembra-nos Agamben: ‘(se o princípio sobre o qual se baseia [o estado de exceção] não for reinvocado e colocado novamente em questão) tenderá a estender-se sobre todo o planeta’. Admitamos: o exercício da crítica das formas contemporâneas de poder ainda é urgente!”.
_____________
“Diante do incessante avanço do que foi definido como uma `guerra civil mundial`, o estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”
_____________
Autor: Giogio Agamben
Editora: Boitempo
Preço: R$ 25,90 (144 págs.)