Originalmente publicado em 2007, Uma história social do morrer, do médico e sociólogo Allan Kellehear, foi recentemente lançado no Brasil, com tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, pela editora Unesp. O livro insere-se em uma zona híbrida de encontro entre ciências médicas e biológicas com história cultural e sociologia. Trata-se da maior revisão das ciências clínicas e humanas sobre a conduta humana da morte.
A abordagem histórica do livro perspectiva nossas recentes percepções de mortes por câncer ou doenças terminais em um contexto ampliado, histórica, epidemiologica e globalmente. Seu exame começa com o início da consciência da mortalidade, na Idade da Pedra. Passa pela preparação para a morte nas aldeias rurais das culturas de assentamento e pela gestão do processo da morte por profissionais terceirizados nas cidades. Por fim chega à Era Cosmopolita, nossa era globalizada, em que o morrer se configura cada vez mais como um ato vergonhoso, trágico e antissocial. Assim, para o autor, o comportamento que conhecemos e temos diante da morte atualmente vem sendo construído ao longo de milhares de anos.
Neste panorama da história humana do fim, Allan Kellehear identifica e descreve os padrões típicos do morrer em cada período histórico, com suas características morais e culturais, as tensões e contradições “que puxam ou empurram o moribundo à medida que ele aspira a criar ou a resistir à morte arquetípica do seu tempo”, assim como a “psicologia social por trás do modo como os morrentes se comportavam” e a responsabilidade social no final da vida.
Para o autor, a maneira como encaramos o morrer é chave para compreender o tipo de pessoa que somos. Ou seja, a conduta no morrer revela as forças sutis, íntimas e desapercebidas em nossa vida cotidiana, que moldam nossa identidade e individualidade. Entre variadas heranças culturais e diferentes ambientes físicos, nosso comportamento pessoal perante a morte se mostra em um punhado de estilos simples. De acordo com Kellehear, “cada um desses estilos de morrer conta ansiosas histórias do viver em determinados ambientes físicos, econômicos e sociais”.
Com isso, além de oferecer um renovado debate sobre o significado do morrer, nos oferece uma perspectiva privilegiada para refletirmos sobre o nosso destino comum e a maneira como a “experiência de morrer tornou-se gradualmente mais privada ao mesmo tempo que seu reconhecimento passava a ser mais publicamente controlado e definido”.
Assim como outros fenômenos da vida social, o processo do morrer pode ser experienciado de maneira diversas de acordo com os significados compartilhados desta experiência, os quais dependem do momento histórico e dos contextos sociais e culturais. No campo dos estudos sociológicos, a morte emergiu de maneira mais sistemática como objeto de estudos a partir da década de 1960, com as pesquisas históricas de Phillipe Ariès e de Michel Foucault, além dos trabalhos pioneiros de Norbert Elias.
De acordo com a socióloga brasileira Rachel Aisengart Menezes, em artigo publicado na revista Campos, da Universidade Federal do Paraná, em 2003, a partir desta produção, “pode-se identificar duas configurações sociais do morrer – tratadas como tipos ideais no sentido weberiano – em dois momentos históricos distintos, denominados por estes e outros autores como morte tradicional e morte moderna. A primeira foi detalhadamente investigada sob o ponto de vista histórico por Ariès, o qual considera que na sociedade hierárquica ocidental a morte de uma pessoa afetava toda a comunidade, que participava ativamente dos últimos momentos do moribundo. Para Elias, Ariès encarou o modelo de morte tradicional de forma idealizada: o morrer, comparado ao século XX, era muitas vezes mais doloroso, com um espectro menor de possibilidades de alívio dos tormentos dos agônicos. A morte era vivenciada de forma mais familiar e onipresente, menos oculta, o que não significa que se tratasse de uma experiência tranqüila e pacífica, uma vez que os sentimentos religiosos de culpa e medo do castigo eram freqüentes. O nascimento e a morte tinham caráter público: eram acontecimentos sociais, vividos na e pela comunidade, menos privatizados do que no século XX. Segundo Elias, a transformação do comportamento social – em especial entre os séculos XVIII e XX – em relação à morte é um dos aspectos do processo civilizador. Tanto Foucault como Ariès enfocaram a passagem do monopólio dos cuidados ao doente e ao moribundo, da família e dos religiosos para o médico e suas instituições. O hospital geral – como instrumento terapêutico – surge no final do século XVIII, concomitantemente à transformação no conhecimento que instituiu a racionalidade anátomo-clínica, estruturante da medicina ocidental moderna. Antes do século XVIII, o hospital era uma instituição de assistência, separação e exclusão – não do doente a ser curado, mas do pobre destinado a morrer: tratava-se de um ‘morredouro’. No final do século XVIII, os elementos constituintes das patologias são reorganizados e a medicina passa a produzir um discurso científico sobre o indivíduo, sua saúde e doença. Na construção do paradigma referente à racionalidade anátomo-clínica ocorreu uma nova forma de integração da morte no pensamento clínico, transformando a medicina em ciência do indivíduo”.
A morte é um evento que invariavelmente absorve o envolvimento entre pessoas, diretamente, quer sejam familiares próximos ou cuidadores, ou indiretamente, no compartilhamento da própria condição de mortalidade. Para Kellehear, é a antecipação autoconsciente que impulsiona alterações sociais cotidianas. A estrutura de seu panorama histórico, que divide a história social do morrer em quatro períodos, baseia-se em um evolucionismo que torna-se problemático quando, ao analisar nossa era, retira da discussão a religião.
Allan Kellehear é professor de sociologia da Universidade de Bath, Reino Unido. Médico, recebeu seu PhD em Sociologia na Universidade de New South Wales de Sydney, Austrália.
Autor: Allan Kellehear
Editora: Unesp
Preço: R$ 58,80 (538 págs.)