“Tenhas pena dos desamados servos
do Céu, e não de mim, que à mente entrono
a paz, qual luz no sol: é vão falar!
Chama os demônios”.
O poeta Percy Shelley (1792-1822) compõe, com Lord Byron e John Keats, a tríade mais expressiva do poesia romântica inglesa. Pouco traduzido no Brasil, ganhou, em 2015, uma edição cuidadosa com Prometeu desacorrentado e outros poemas, a mais extensa seleção de poemas de Shelley já publicada em português. A antologia, bilíngue, foi selecionada e traduzida por Adriano Scandolara, pesquisador da obra do poeta pela UFPR. A tradução é feliz ao manter o vigor dos poemas originais.
Shelley, figura cujos poemas podem ser ditos como os mais radicais do Romantismo inglês, teve uma vida tão breve quanto impressionante. Morto precocemente em um acidente náutico, fora sempre um rebelde; ingressou em Oxford em 1810 e, em 1811, já foi expulso por ter circulado o polêmico panfleto “The necessity of atheism”, em que expressava considerar absurda a ideia de um deus criador; já na faculdade, publicou anonimamente os primeiros versos, que até o final da vida somaram milhares de páginas – somando-se a elas a produção em prosa, ensaística e seu importante trabalho de tradução, do grego, latim, italiano, espanhol e alemão (seus trechos traduzidos do Fausto de Goethe, por exemplo, são defendidos por Harold Bloom como a melhor tradução já feita em inglês). Ainda nesta época, Shelley envolveu-se com uma moça de 16 anos, com tem teve um filho; poucos anos mais tarde, em 1814, abandona a ambos para viver com Mary Wollstonecraft Godwin – que tornou-se notória como Mary Shelley, autora de Frankstein – o Prometeu moderno. Mary era filha da escritora Mary Wollstonecraft, autora do livro que é considerado o marco do pensamento feminista, Reivindicação dos direitos da mulher [1792], e do também escritor William Godwin, um dos primeiros autores de romances de mistérios, cujo célebre The adventures of Caleb Williams foi elogiado por Edgar Allan Poe, e de um influente comentário sociológico sobre a justiça política. Os poemas de Shelley dessa fase propõem ideias revolucionárias, sobretudo Queen Mab, inspirado na rainha das fadas shakesperariana, que no poema mostra em sonho um reino utópico, em que ideias como vegetarianismo, anarquia, ateísmo, a defensa do amor livre, são mostrados como rumos, avessos à da revolução violenta, para uma sociedade melhor. Ainda é de Godwin que Shelley tira a inspiração para a composição do Prometeu desacorrentado, publicada em 1820, poeticamente muito mais bem resolvido.
O poema trata da relação entre o homem e figuras do poder, baseado no mito grego de Prometeu. Shelley era grande conhecedor dos gregos. Apenas entre 1814 e 1815, sabemos graças a registros feitos por Mary, sabe-se que ele leu, em grego, Homero, Hesíodo, Teócrito e os textos históricos de Tucídides, Heródoto e Diógenes Laércio, como conta Adriano Scandolara na “Introdução” ao volume. Em 1816, leu Prometeu acorrentado, de Ésquilo, as obras de Luciano e várias das Vidas de Plutarco. Entre 1817 e 1818, segundo Scandolara, Mary Shelley anota as leituras dos Hinos homéricos, da Ilíada, mais alguns dramas de Ésquilo e de Sófocles e O banquete de Platão, “que ele traduz por inteiro para o inglês no curso de dez dias, em julho de 1818 […] apesar de não poder publicar sua tradução, ela lhe serve para, junto da leitura de Milton e Ésquilo, inspirar os primeiros versos de Prometeu desacorrentado em setembro daquele mesmo ano”. Segundo o tradutor, o poema de Shelley é iniciado após a tradução de Platão, mas também outras de suas traduções, virtuosísticas, foram fundamentais para a estabelecimento formal.
Conta o tradutor que, segundo a mitologia grega, “Prometeu foi o titã punido por Zeus por ter roubado o fogo para dá-lo aos mortais, frustrando os planos de Zeus, que planejava mantê-los domesticados como gado. Seu castigo é ser acorrentado ao Cáucaso, onde ficaria exposto aos elementos e teria seu fígado devorado por um abutre (ou por uma águia; as versões variam), até que fosse feito um acordo com Zeus. Nesse pacto, Prometeu revelaria informações importantes sobre o futuro do deus olímpico, no que dizia respeito a uma profecia sobre sua queda (lembrando que, no grego, Prometeu […] significa algo como ‘pré-vidente’), uma vez que, segundo uma das versões do mito, que é atualizada por Ésquilo, o filho de Zeus com Tétis seria quem estaria destinado a derrubá-lo. Assim, ao ceder enfim às torturas infligidas, Prometeu revelaria a profecia, que poderia, portanto, ser evitada por zeus ao dar Tétis em casamento a peleu, que, por sua vez, com ela geraria Aquiles, uma das principais figuras da Guerra de Troia e da Ilíada – mantendo a ordem na hierarquia celestial”. Ésquilo narra não só a parte mais popular do mito, sobre o roubo do fogo e sua punição, mas também estes detalhes obscuros do mito. Segundo Scandolara, “Percy Shelley leu a peça grega em 1816, e ela tem um papel crucial que vai além da inspiração óbvia denunciada pela referência no próprio título, Prometheus Unbound – Prometheus Bound é como Prometeu Acorrentado é conhecido em inglês. Ela é determinante para a estrutura da peça de Shelley (o ato I inteiro é uma releitura de Prometeu Acorrentado, por exemplo, acompanhando de perto, inclusive, alguns versos), e toda a premissa dela repousa na inversão da peça de Ésquilo. Se, no mito grego, Prometeu é desacorrentado após desistir de sua insubmissão e ceder ao poder de Jove, em Shelley sua resistência é inquebrantável, e Jove termina a peça destituído de seu poder”. Também a versão platônica do mito, exposta no diálogo Protágoras, que estabelece um fundamento ético do discurso político, e versão relatada por Élio Aristide, que se opõe à de Platão. De acordo com o tradutor, “no período romântico, diversos artistas, além de Shelley, vieram a reaproveitar o mito, sempre sob uma ótica simpática ao titã, padroeiro de todos os poetas, que representaria esse caráter criativo e transgressor da humanidade. […] Mas, para nenhum desses autores, o tema foi tão importante quanto foi para Shelley, que faz do mito um verdadeiro evangelho”. O poeta estava familiarizado com as diferentes versões antigas do mito, que, diz Scandolara, “devem ter influenciado a sua própria releitura mítica”.
O principal ponto de alteração do mito operada por Shelley é exposto pelo próprio poeta no prefácio do poema: “Mas, na verdade, eu era avesso a uma catástrofe tão flébil quanto a reconciliação do Campeão com o Opressor da humanidade. O interesse moral da fábula, tão poderosamente sustentado pelos sofrimentos e resistência de Prometeu, seria aniquilado se pudéssemos concebê-lo desdizendo sua linguagem elevada e se encolhendo diante de seus adversário perfidioso e bem-sucedido. O único ser imaginário semelhante em algum grau a Prometeu é Satã; e Prometeu é, em meu julgamento, um personagem mais poético que Satã, porque, além da coragem e majestade e oposição firme e paciente à força onipotente, ele é passível de ser descrito como isento das máculas da ambição, inveja, vingança e desejo por engrandecimento pessoal que, no Herói de Paraíso Perdido, interferem com os interesses. O personagem de Satã engendra na mente uma casuística perniciosa que nos leva a pesar suas falhas com seus erros, e a desculpar aquelas porque estas excedem qualquer mesura. Nas mentes daqueles que levam essa ficção magnífica em consideração com um sentimento religioso, algo pior é engendrado. Mas Prometeu, do modo como é, é o tipo de maior perfeição de natureza moral e intelectual, impelido pelas motivações mais puras e verdadeiras aos melhores e mais nobres fins”. Shelley louva a rebeldia e a insubordinação e inverte o herói, que, para Ésquilo, só tem pleno sentido quando se reconcilia com Zeus, como pontua o tradutor, “uma vez que a insubordinação intelectual podia ser vista como nociva à constituição da pólis, capaz de destruí-la por dentro, corroendo seus elos. Sócrates foi um exemplo de insubordinação intelectual ao negar em público a existência dos deuses e, além de ter sido ridicularizado na peça As nuvens, de Aristófanes, foi condenado ao suicídio via ingestão de cicuta”.
A ideia do fogo metafórico, simbolizando a Inteligência de Prometeu, contra o poder de Zeus, pode embasar a leitura do mito como uma história da conciliação entre a inteligência com a ordem e o poder. Porém, ressalta Scandolara, se em Ésquilo “ocorre a reconciliação, no final, entre o Poder e a Inteligência, o que ocorre em Shelley é que a Inteligência suplanta e abole o Poder, e aquilo que era visto entre os gregos como uma falha moral, para os românticos passa a ser uma virtude. […] O poeta opera, assim, em Prometeu Desacorrentado, uma estranha mescla de modernidade e antiguidade, na medida em que se apropria de um molde mais antigo para propor uma poética e uma reflexão ideológica bastante modernos”.
A peça-poema de Shelley narra a queda de Júpiter, a libertação de Prometeu e a regeneração do mundo, com a negação da violência do poder, tirânico, do pai dos deuses. “No mundo regenerado”, aponta o tradutor, “em que Prometeu, que representa as capacidades criativas do homem, não é mais restrito pelo poder (Júpiter), toda forma de opressão e estrutura de poder é abolida, mesmo na natureza humana”. Se na peça de Ésquilo, Zeus torna-se sábio e menos violento com o tempo, na de Shelley, é Prometeu que torna-se sábio, com o tempo, mas também com a dor.
De acordo com Scandolara, a obra é um poema pensado para palco, mas dada a dificuldade de encená-la, o autor acabou por compô-la como um “closet drama”, para ser apenas lido, como uma experiência lírica apenas textual.
A poeta Elisabeth Bishop, comparando a poesia mais popular de Shelley, escrita por engajamento político para que as massas pudessem adentrar sua produção considerada hermética, ao Prometeu desacorrentado, pontua: “Ele mostra as mesmas crenças e esperanças de reformar a humanidade que os seus primeiros poemas, mas não há mais uma listagem inútil das falhas da Terra. Shelley chegou ao ponto de entender que ele sozinho poderia fazer muito pouco contra a ignorância e a convenção, e, sem tentar simplificar seus poemas para ter um maior apelo ao público geral, como fizera anteriormente, ele escrevia exatamente como se sentia. O resultado é um padrão intrincado de espíritos, tempestades, música e nuvens, todos movidos por suas ideias arrebatadoras. É impossível lê-lo e ver as coisas exatamente como eram antes”.
O professor de língua e literatura latina na UFPR Guilherme Gontijo Flores, revisor de tradução do volume, não poupa elogios à tradução de Scandolara; segundo ele, esta “é a primeira tradução integral do Prometeu Desacorrentado,obra-prima, misto de mito político, poesia, música, teatro, uma visada da obra total numa poética radicalmente diversa do que se fazia até então; aqui a polimetria em pletora, a potencialidade sonora e imagética que por vezes parece anunciar as sementes do surrealismo e mesmo o jogo conceitual entre mito grego e política inglesa passam por um crivo de recriação poética que assume correr riscos: nada de poesia média, entremeada de mediocridades. […] Por isso, porque a tradução é poética e crítica, dotada de dom e de riscos, podemos dizer sem medo que Percy Bysshe Shelley finalmente nasceu em português”.
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.Trecho.
Senhor dos Deuses, Dáimones e Espíritos,
menos Um, congregantes nestes mundos
de luz e voltas, que eu e Tu somente
insones contemplamos! Mira a Terra
de servos multitudinária, a quem
punes por loas, preces genuflexas,
labor, peitos sangrando em hecatombes,
desamor próprio, medo e fé infértil.
Enquanto a mim, teu imigo, cego em ódio,
deste-me triunfo e reino em teu escárnio
sobre meu mal e tua vã vingança.
Três mil anos de insone desabrigo,
momentos, sempre por ferrões divisos,
iguais a anos, tortura e solitude,
desdém e desespero – eis meu reino –
mais glorioso que aquele que em teu trono
despiciendo prospectas, Grande Deus!
Ah, onipotente, se eu me rebaixasse
à tua vergonhosa tirania
e não pendesse fixo a este gélido
morro confunde-águias, negro e morto;
sem fim, sem mato, inseto, besta ou vida.
Ai de mim! Dor, dor, sempre, sempiterna!
[…]
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PROMETEU DESACORRENTADO E OUTROS POEMAS
Autor: Percy Shelley
Editora: Autêntica
Preço: R$ 64,00 (416 págs.)