Seguindo as discussões levantadas pelo poeta Antônio Cícero em sua coluna sabática na Folha de S. Paulo e em seu blog sobre o crepúsculo das vanguardas, acrescento uma pertinente definição de vanguarda dada pelo poeta e crítico uruguaio Eduardo Milán – que, segundo Regis Bonvicino “ainda não encontrou espaço adequado para seu talento no Brasil, embora seja um ícone no mundo hispânico” – durante uma entrevista à revista Sibila – os entrevistadores foram Antonio Ochoa, Gabriel Bernal Granados, José Luis Molina, Ernesto Lumbreras, Hugo Gola e Bonvicino -, publicada no número 8-9 de 2005. (Você pode comprar este número da revista, publicada pela Ateliê Editorial, no site da 30PorCento por R$22.40).
No início da entrevista, Hugo Gola pede a opinião de Milán a respeito da declaração proferida pelos porta-vozes da pós-modernidade sobre a morte das vanguardas:
“Os porta-vozes da pós-modernidade declaram enfaticamente que a vanguarda morreu (como se a busca de respostas inéditas para a passagem do homem pela terra pudesse morrer). Reduzir a vanguarda às inovações do primeiro quarto do século XX, e sustentar sua vigência atual, é um anacronismo, mas reinvindicar uma atitude crítica frente à realidade e diante da linguagem não é introduzir uma dinâmica válida para a literatura e a arte de qualquer época? Qual o seu ponto de vista?”
Eduardo Milán respondeu:
“Sem dúvida, a atitude crítica frente à realidade e diante da linguagem não parece ser uma opção, mas sim a única possibilidade de que a poesia e a arte continuem ativas, vivas. Mas esta não é uma atitude específica de vanguarda. O que é específico da vanguarda é a antecipação e a invenção somadas à transformação social vital. A outra, crítica da realidade e crítica da linguagem, é uma manisfestação inequivoca da arte da modernidade. Nesse sentido, estabelece-se aquela ‘duplicidade’ de ação que Baudelaire via na arte moderna: um pé no eterno, outro na vertigem. É um paradoxo: para ser eterno, há que criticar a eternidade sem renunciar a ela e ganhar, diga-se de passagem, um lugar aqui como pertencente a este presente histórico. Creio que é pertinente não esquecer que as vanguardas são uma crítica não somente à tradição, mas também à modernidade. Refiro-me às primeiras vanguardas – dadá, cubo-futurismo, construtivismo. E uma técnica que é, certamente, quase o espírito das primeiras vanguardas: a collage. Evidentemente, não teria podido haver vanguarda sem modernidade por trás. Hoje, vinculamos a atitude crítica diante da linguagem e frente à realidade a uma atitude de vanguarda. Mas são gestos anteriores. Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud e, sem dúvida, especialmente Malarmé, são poetas críticos nos dois âmbitos; e Laforgue e Corbière. E Rabelais, Sterne e Carroll na narrativa. O barroco poético espanhol é especialmente crítico à realidade e à linguagem. Insisto em que é uma atitude que tem uma história anterior às vanguardas. Aí tudo eclode. Não sei se Baudelaire queria mudar o mundo, creio que não, mesmo sendo sensível frente à miséria humana. E era muito crítico à realidade e à linguagem – sobretudo em seus poemas em prosa. Parece-me coerente que os pensadores pós-modernos declarem com insistência a morte da vanguarda. Em termos reais, não há vanguarda. O que há são extratos, extrapolações do corpo da vanguarda que se transformam em atitudes críticas a uma realidade como a presente, tanto artística como da própria vida. Mas são atitudes de vanguarda fora do tempo da vanguarda. Há que ter cuidado com a consideração intemporal da vanguarda, como queria Beuys. Manter o espírito crítico é a melhor maneira de manter o espírito vivo. Isso aprendemos bem da modernidade ilustrada (não sei se não foi a única coisa que aprendemos). Em todo caso, quando propomos a vigência da vanguarda para além dos procedimentos artísticos, estamos propondo a vanguarda como símbolo: de rebeldia, de transformação, de crítica à hipocrisia e à desatenção da vida. Mas é um símbolo. Outra coisa é a importância das vanguardas para a América Latina, que coincide com a nossa emancipação como arte poética, com a nossa autonomia para a participação. Darío, Vallejo, Girondo, Huidobro, Parra, a Poesia Concreta brasileira, entre outros, explicam isso.”