“O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes” – Manolo Florentino.
O estudo Em costas negras – Uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), de Manolo Florentino finalmente volta às livrarias brasileiras. Vencedor do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 1993, foi editado a primeira vez pela Companhia das Letras e esteve durante um tempo esgotado; agora, a Editora Unesp lança sua nova edição.
A obra apresenta uma significativa revisão da história do tráfico negreiro escravista, analisando as estruturas política, social e econômica tanto no Brasil quanto na África, que o deslocamento de cerca de 10 milhões de africanos entre os séculos XVI e XIX. Florentino investiga também como os mercadores de escravos, classe social ascendente, influenciaram na própria constituição do Estado brasileiro. Sua pesquisa baseia-se em uma leitura detalhada de documentos históricos, entre listagens de navios negreiros, inventários post-mortem e registros imobiliários, submetendo-a a uma metodologia estatística que vincula necessariamente o comércio escravista a uma crescente demanda de mão-de-obra da economia fluminense. A organização do comércio funcionava como instrumento de viabilização da reprodução física dos escravos no Brasil, e contava com a anterior produção social do cativo na África, sendo que esta dava-se por um lado através da violência – o que, em termos econômicos, efetivamente baixava os preços – e, por outro lado, em termos sociais, pela cristalização da hierarquia e das relações de poder.
De acordo com o historiador Manoel Batista do Prado Junior, em artigo em que comenta a possibilidade de organização do comércio de escravos por mais de trezentos anos, inclusive apesar da repressão inglesa a partir de 1830 e de sua proibição em 1831 no Brasil. Outra questão que Prado Junior levanta é: “até que ponto suas matrizes culturais, heranças e recordações de vida pregressa naquele continente foram fundamentais para sua organização no Novo Mundo”. Segundo ele, o sudeste brasileiro, região de fluxos culturais, “ao longo dos séculos XVIII e XIX, recebeu cativos de basicamente três grandes áreas africanas: África ocidental, centro-ocidental e a costa oriental. Segundo Manolo Florentino, no intervalo entre 1795 e 1811, a África ocidental era responsável pelo envio do pequeno contingente de 3,2% dos cativos desembarcados na praça comercial do Rio de Janeiro, sendo, a partir de 1816, inexistentes os navios oriundos daquela região. A África centro-ocidental, entretanto, se consolidou como a maior exportadora de braços para os estabelecimentos comerciais do agro e da urbe fluminense, com o volume de negreiros oriundos dessa região sendo triplicado em números absolutos após 1811. Ao mesmo tempo, também cresceram os índices de escravos desembarcados no Rio de Janeiro provenientes da costa oriental da África, mais especificamente da Ilha de Moçambique e Quilimane. No caso específico da África oriental, Florentino infere que ela se consolidou como grande fonte abastecedora do porto do Rio de Janeiro a partir de 1811, ao lado da região de Congo e Angola. Entre 1795 e 1811, segundo dados do autor, a Ilha de Moçambique era responsável por 4,1% do contingente de africanos aqui desembarcados. A partir da abertura dos portos, com o estabelecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a exportação de africanos pela costa oriental alcançou um ritmo ainda maior do que as saídas dos portos da costa atlântica. Dentre as hipóteses aventadas por Florentino para tal crescimento, encontra-se a de que o avultamento das exportações de Moçambique e Quilimane denotava a dificuldade dos mecanismos sociais de produção de escravos na zona congo-angolana em responder, de imediato, à grande necessidade de cativos emanada pelo Sudeste brasileiro, em franca expansão urbana das lavouras de café e das plantations de açúcar”.
Em artigo, Manolo Florentino pontua: “O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. Uma pesquisa recente coordenada pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que, entre os séculos XVI e XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e exportados para a América, a Europa e algumas ilhas do oceano Atlântico. Desses, cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia.
Tudo começou no século XV, quando os portugueses abriram o caminho para a exploração da costa da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador, em 1434. Ao longo dos anos seguintes, os navegadores lusitanos avançaram cada vez mais rumo ao sul, até atingirem, na década de 1470, a baía de Biafra, na região dos atuais Nigéria e Camarões. Nessa época, no entanto, a mão de obra africana ainda não era tão cobiçada. O principal objetivo dos europeus era buscar terras, mercados, ouro e uma rota marítima alternativa para o Oriente.
Foi só após a conquista das ilhas do Atlântico que o trabalho forçado de africanos começou a se difundir. Em São Tomé foi implantado pela primeira vez o modelo de exploração mercantilista que mais tarde vingaria em boa parte das Américas, baseado no tripé grande propriedade, monocultivo e trabalho escravo. Essas ilhas e, em menor escala, o próprio continente europeu, eram os principais pólos de uma fraca demanda por africanos até princípios do século XVI”.
O que Florentino analisa é a ressignificação, tanto simbólica quanto estratégica, do Oceano Atlântico enquanto elemento de formação do território e, portanto, do Estado nacional brasileiro. As duas costas, representam dois momentos de um mesmo sistema: a produção escravista americana e a reprodução de escravos do lado africano.
Segundo José Honório Rodrigues, no ensaio “O sentido da historiografia naval”: “A pobreza de nossa bibliografia de história naval é um fato estranho num país dotado de 7.480 Km de costa e de extensos recursos fluviais […] A bibliografia histórica do Império desconheceu, mesmo como simples crônica, o papel da marinha na preservação da unidade nacional. Um ou outro estudo de História Geral do Brasil apontou ou anotou a função e a
conduta da marinha na defesa da soberania, da unidade e da integridade territorial, aspirações e objetivos permanentes da nação. Mas não houve quem investigasse, num amplo exame, as relações mútuas destas aspirações e das ocorrências e pusesse em relevo, na esfera política, as ações das forças navais”.
Autor: Manolo Florentino
Editora: Unesp
Preço: R$ 51,80 (307 págs.)