Cada dia mais, o estilo, o design e a beleza se impõem como imperativos estratégicos das marcas. O apelo ao imaginário e a habilidade em despertar a emoção dos consumidores impulsionam a criação massiva de mecanismos de sedução, no design, na moda, no cinema, nos produtos. Arte e mercado nunca antes se misturaram tanto, exagerando, na experiência contemporânea, o alcance do desdobramento das dimensões do valor estético. Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy, investigam essas relações, A estetização do mundo e o aparentemente paradoxal conceito do capitalismo artista.
Desvendando a superficialidade de um mundo em “tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor”, os autores investigam as transformações do capitalismo e do consumo, bem como seus alcances na individualidade dos sujeitos.
Sua análise mostra que a cultura e sua expressão artística se converteram em simples negócio de mercado. Assim, a arte hoje impregna o mundo comum.
O capitalismo é artista, estético, porque mexe com as emoções, com a percepção e com a sensibilidade. A ideia passada por esse capitalismo é que vivemos em um mundo estupendo – ainda que apenas uma pequena parcela da população mundial tenha o dinheiro necessário para desfrutá-lo, enquanto a outra parte sofre com a ansiedade que o hiper consumo, a hiper estimulação e o imediatismo geram. A motivação econômica, para os autores, não mata a criação, antes a democratiza, tornando cada vez mais presentes a beleza e a criatividade na vida cotidiana e no comércio.
A arte, pois, hoje é instrumentalmente aplicada a tudo, funcionando dentro de um sistema geral de investimentos e lucros. A esta absorção da arte pelo mercado os autores chamam “capitalismo artista”, uma articulação de produção em grande escala de bens e serviços, com finalidades comerciais, porém munidos de componentes estético-emocionais, utilizando a criatividade artística para estimular o consumo mercantil e a diversão de massas.
A primeira premissa da arte aplicada, conforme o texto examina, é a renúncia à ideia de que a arte se afasta do comercial e da celebridade. Um exemplo dos autores é a frase proferida por Andy Wharhol, “I’m a bussiness artist” [“Sou um artista comercial”], que supõe uma ruptura, pois o comercial deixa de se identificar com o vulgar e, a partir de então, uma arte comercial passa a ser aceita como arte verdadeira. Arte e sucesso comercial deixam de diferenciar-se e, a figura do artista, passa a converter-se na de uma celebridade.
O capitalismo, a partir do princípio do século XX, vem aprofundando a possibilidade de produzir e comercializar emoções, integrando-as à engrenagem econômica. O emocional, hoje, penetra inclusive a esfera política. Tudo que nos fazer rir ou chorar, o capitalismo age como uma engenheira de sonhos e emoções. Há, pois, uma ditadura comercial, tudo é tranformado em comércio.
A análise dos dois autores é engenhosa. Compreende, além da amplo panorama do capitalismo artístico, o mundo do design e o estado estético do consumo, no qual convergem arquiteturas comerciais e paisagens urbanas sob o novo conceito da cidade-shopping, na qual se move o consumidor transestético – orientado para experiências estéticas multissensoriais. Segundo a análise, na sociedade industrial, os consumos eram estruturados por aspetos gerais de classe, por exemplo as classes populares privilegiavam o funcional, prático, sólido e fácil de manter; hoje, importam-se com marcas reconhecidas.
Lipovetsky, autor dos incontornáveis O império do efêmero e O luxo eterno, em entrevista concedida a Andrei Netto, para o jornal O Estado de São Paulo, publicada no caderno Aliás, disse:
“Há algumas décadas acontece a globalização da moda, com impactos econômicos e culturais. Durante muito tempo ela foi um fenômeno circunscrito ao Ocidente. Paris era o centro, e todo o mundo copiava suas tendências. Isso mudou. Hoje japoneses, coreanos, brasileiros, muitos países tem um fashion week. Tornou-se fenômeno econômico importante, porque marcas mundiais reafirmam nesse eventos sua criatividade e originalidade. Por isso a moda alcançou um status econômico importante em todo o mundo”. Lipovetsky ressalta, porém, que a moda existe “desde o fim da Idade Média no mundo aristocrático, culto, quando era imperativa, quando todos tinham que obedecer aos seus cânones. A ditadura da moda, portanto, não é contemporânea. Quem não seguisse o ditado era rejeitado, inclusive entre os homens. A aparência há muito tempo é crucial”. Quanto aos modelos, também “não são um fenômeno novo, ligado á comunicação da moda. No final do século XIX já víamos a emergência dessa figura. Entre as duas guerras ela já tinha parte de suas características atuais, como a magreza. A novidade de nosso tempo está no fato de que manequins e modelos se tornaram estrelas. Antes eram apenas fotografados. Hoje são entrevistados, se expressam, são ouvidos. […] Modelos hoje são pessoas na vanguarda da mídia, que se transformaram em ícones de uma construção mítica”. O filósofo, ainda na mesma entrevista, fala também sobre a opressão que, pontua, não é da moda, mas dos standards físicos: “O que há em nossas sociedades é um imperativo da juventude, da correção do corpo, para que ele esteja de acordo com as normas da beleza, com o culto da magreza. Veja, no entanto, que não é apenas a indústria da moda que está por trás disso. É a indústria da alimentação, com sua obsessão pelo light, a indústria da atividade física, do fitness, a indústria da medicina estética”. Sobre o conceito de “capitalismo artista”, finalmente, o autor explica: “Antes de mais nada, a estetização do mundo acompanha a própria história da humanidade. Desde a pré-história tínhamos formas de estetização, como as pinturas faciais, as bijuterias, os diferentes adereços. A novidade é que a estetização hoje é conduzida pelo capitalismo pós-fordista,que não se contenta em produzir produtos funcionais, mas investe em produtos de moda para vender mais, qualquer que seja a área. No passado, um par de óculos era apenas uma órtese para enxergar melhor. Hoje é um acessório de moda. O mesmo raciocínio vale para o automóvel, para os móveis, para tudo. Estamos na época do capitalismo artista, que incorpora a dimensão artística em todos os domínios da indústria”.
Traduzido por Eduardo Brandão, o livro acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
A ESTETIZAÇÃO DO MUNDO – VIVER NA ERA DO CAPITALISMO ARTISTA
Autores: Gilles Lipovetsky e Jean Serroy
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 62,90 (472 págs.)