No dia 31 de outubro, em 1902, nascia em Itabira Carlos Drummond de Andrade. O Instituto Moreira Salles rende-lhe, nesta data, uma homenagem – veja a programação do “Dia D” – que a Livraria 30porcento aqui acompanha.
Recentemente reeditado pela Companhia das Letras, o Discurso de primavera e algumas sombras foi publicado pela primeira vez em 1977. São poemas originalmente publicados na coluna que Drummond mantinha no Jornal do Brasil. É notável, neles, seu caráter público e portanto conscientemente político; muitos dos poemas tratam de episódios que pontuam um tempo conturbado, de maneira geral no mundo e, especificamente no Brasil, retratam o desalento com o regime ditatorial militar que fechava todos os espaços destinados à liberdade, coletiva e individual.
Entre os temas recorrentes nos poemas, encontra-se também, forte, preocupado, niilista, o despertar da consciência ecológica. Em tempos que realizaram a Conferência de Estocolmo, primeira grande discussão mundial sobre as mazelas planetárias do desenvolvimento industrial, Drummond foi um dos primeiros autores a posicionar-se de maneira crítica à degradação ambiental. Poemas como “Águas e mágoas do Rio São Francisco”, que abre o volume, “Num planeta enfermo” ou “Antibucólica 1972” mostram sua verdadeira indignação com a devastação da natureza. Outra vertente política da poesia drummondiana.
Sob esse aspecto, Drummond é um poeta público, como o considerou Otto Maria Carpeaux, segundo quem o poeta representa, mesmo em seu individualismo, a sociedade de seu tempo. Para Carpeaux, no denso ensaio “Fragmentos sobre Carlos Drummond de Andrade”, ainda que só comente os quatro primeiros livros do poeta, aponta a inspiração que lhe desperta “o profundo sentimento de responsabilidade, que o arranca da solidão, que o liga a todas as criaturas que sofrem e são humilhadas, que lhe inspira a solidariedade das ‘mãos dadas’ e uma grande piedade”. Segundo Carpeaux, Drummond foi o primeiro poeta público do Brasil e do vasto mundo.
Tendo a simplicidade como critério, os seis blocos em que divide-se o Discurso de primavera e algumas sombras, choram as mudanças nas paisagens brasileiras, a ansiedade das pessoas cosmopolitas, a venda da cultura brasileira; protestam contra a guerra e reclamam dos automóveis; relembram a inconfidência mineira; também cantam os amigos, como Pedro Nava, Murilo Mendes, Portinari, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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ÁGUAS E MÁGOAS DO RIO SÃO FRANCISCO
Está secando o velho Chico.
Está mirrando, está morrendo.
Já não quer saber de lanchas-ônibus,
nem de chatas e os seus empurradores.
Cansou-se de gaiolas
e literatura encomiástica
e mostra o leito pobre,
as pedras, as areias desoladas
onde nenhum caboclo-d’água,
nenhum minhocão ou cachorrinha-d’água,
cativados a nacos de fumo forte,
restavam para semente
de contos fabulosos e assustados.
Ei, velho Chico,
deixas teus barqueiros e barranqueiros na pior?
Recusas pegar frente em Pirapora
e ir levando pro Norte as alegrias?
Negas teus surubins, teus mitos e dourados,
teus postais alucinantes de crepúsculo
à gula dos turistas?
Ou é apenas
seca de junho-julho para descanso
e volta mais barrenta na explosão
da chuva gorda?
Já te estranham, meu Chico. Desta vez,
encolheste demais. O cemitério
de barcos encalhados se desdobra
na lama que deixaste. O fio d’água
(ou lágrimas?) escorre
entre carcaças novas: é brinquedo
de curumins, os únicos navios
que aceitas transportar com desenfado.
Mulheres quebram pedra
no pátio ressequido
que foi teu leito e esboça teu fantasma.
[…]
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DISCURSO DE PRIMAVERA E ALGUMAS SOMBRAS
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Editora: Companhia das Letras
Preço mínimo: R$ 29,40 (200 págs.)