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A chamada política da identidade

4 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
Renina Katz, litografia [Sem título], 1977

Renina Katz, litografia [Sem título], 1977

O economista e escritor indiano Amartya Sem, professor da Universidade de Harvard, Prêmio Nobel de Economia em 1998, neste abrangente e agudo Identidade e violência, sustenta que a “violência assassina” que envolve o mundo é decorrência, por um lado, de infelizes confusões conceituais e, por outro, de ódios ancestrais. Lembrando que a identidade reconforta tanto quanto mata, o autor revê temas incontornáveis como a falsa oposição entre o Ocidente e o “Antiocidente”, o confinamento civilizacional e a liberdade de pensar e manifestar-se sem o temor de represálias, físicas e morais.

Na exacerbação das fronteiras, que gera a sempre crescente violência, está imiscuída a questão da degradação da identidade. Trata-se de uma ilusão identitária.

Segundo Nadine Gordimer, Prêmio Nobel de Literatura de 1991, “é de fato em nome da identidade que coletivos políticos, religiosos, étnicos, fora e dentro do Estado, com renovado vigor, exercem hoje a arbitrariedade, fomentam o conflito, mutilam e matam”.

O autor revê as oposições atribuídas de maneira corriqueira e reducionista, entre raças, religiões, classes, partidos, e as reconhece como verdadeiros conflitos entre as civilizações. Nas palavras do professor Teixeira Coelho, “defendendo uma ideia de identidade não solitarista e pondo pelo contrário em destaque as múltiplas identidades comuns que mais aproximam as pessoas do que as separam, dentro e fora de cada país, Estado ou coletivo, Amartya Sen, ao mesmo tempo que lembra ser ilusória e farsesca a ideia de um destino inevitável, atreve-se a falar na possibilidade de um mundo melhor num momento em que muitos ainda pregam o obscurantismo em seus vários matizes”.

Claro e humanista, o autor ao longo de toda sua obra tornara-se notório sobretudo por defender que a essência do desenvolvimento de um país só pode ser medido em relação às oportunidades que ele oferece à população de fazer escolhas e exercer sua cidadania. O que inclui não apenas a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e educação, segurança, habitação, cultura e liberdade. Foi ele, em 1993, juntamente com Mahbub ul Haq, o criador do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que vem sendo usado desde aquele ano pelo Programa das Nações Unidas para o seu relatório anual. Um de seus mais comentados livros, Desenvolvimento como liberdade, em que pensa a chamada “economia do desenvolvimento”, refuta as falsas hipóteses que sustentam haver uma relação diretamente proporcional entre renda, consumo e satisfação.

No artigo “Amartya Sen – A ideia de Justiça”, os pesquisadores em Direito, Alexandre Araújo CostaI e Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho, comentam, baseados numa leitura de Desenvolvimento como liberdade: “Na medida em que a teoria da justiça é sempre engajada na realização de uma determinada ideia de Bem, é necessário ter critérios para avaliar se a vida de uma pessoa pode ser considerada boa. Na economia, essa medida normalmente leva em conta “renda, riqueza e recursos” (income, wealth and resourses), sendo elas teorias baseadas na utilidade e nos recursos (p. 265). Em contraposição, Amartya Sen propõe uma perspectiva “baseada na liberdade” (freedom-based), na qual a vida boa é medida em termos da efetiva liberdade das pessoas, entendida tanto em termos da existência concreta de oportunidades de escolha individual (possibilidade efetiva de se fazer o que se deseja) quanto da existência de processos de decisão pública que respeitem essa liberdade (p. 266). Segundo Sen, a avaliação da liberdade deve ser feita em termos de capacidades (capabilities), dado que o bem pessoal deve ser medido em termos da “capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar”.

O tema da liberdade é retomado em Identidade e violência, sob outro viés. Aqui Amartya Sen argumenta que o conflito e a violência são sustentados pela ilusão de que os seres humanos se definem exclusivamente, ou sobretudo, a partir de uma única identidade.

A identidade, para ele, é ambígua: por um lado, confortável, responsável por um sentimento de segurança do indivíduo, inserido em uma cultura ou fé; por outro lado, porém, pode impedir a identificação individual com a humanidade como um todo. Amartya Sen utiliza como mote de sua reflexão sua própria experiência de vida na Índia, país em que facções religiosas e étnicas são excludentes, lutam ou guerreiam entre si, matam-se.

Segundo a antropóloga Yvonne Maggie, em artigo, “Amartya Sen fala desse mundo dividido e dos perigos da lógica que está presente nas políticas voltadas para divisões étnicas ou religiosas. Foi em nome de uma pretensa ‘raça’ ariana que a Europa viveu o Holocausto, e foi em nome dos hutus, considerados pelos colonizadores belgas um ‘grupo étnico’ majoritário e oprimido, aos quais deram proteção por meio de políticas particularizadas, que o mais atroz genocídio foi cometido em Ruanda, na África, em 1994”. Pensando no caso brasileiro, Maggie diz: […] uma comunidade que se pensa misturada, regida por um sistema também cheio de ambiguidades ­[…] e que luta contra o racismo, a partir de um ideário construído ao longo de cem anos, poderá viver no futuro o choque entre grupos unívocos. Negros e brancos são hoje categorias instituídas por leis e em pouco tempo poderá não haver mais lugar nas salas de aula das escolas brasileiras para estudantes flicts, o menino da história de Ziraldo que não se identificava com cor nenhuma, mas com todas as cores”.

O poeta brasileiro Antonio Cicero, em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, a obra de Amartya Sem “pode funcionar como antídoto contra a irracionalidade do pensamento ocidental”. Cicero contextualiza a narrativa que sustenta a análise do economista: “Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que ‘os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho’, o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas. Os ‘artífices do ódio’ que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa. Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas”. O poeta brasileiro aponta: “De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações. Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos como, principalmente, membros de exatamente um grupo”.

A edição brasileira deste interessante Identidade e violência foi traduzida por José Antonio Arantes.

 

amartya sen

 

IDENTIDADE E VIOLÊNCIA – A ILUSÃO DO DESTINO

Autor: Amartya Sen
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 26,60 (208 págs.)

 

 

 

 

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