O filósofo antigo Sexto Empírico foi um cético grego da escola pirrônica, cujos escritos dirigem-se contra a defesa dogmática que pretende conhecer uma verdade absoluta. Uma de suas mais importantes reflexões céticas desenvolve-se na obra “Contra os Matemáticos” (Adversus Mathematicos), também conhecida como “Contra os Professores”, dividida em seis livros: Contra os Gramáticos (Livro I), Contra os Retóricos (Livro II), Contra os Geômetras (Livro III), Contra os Aritméticos (Livro IV), Contra os Astrólogos (Livro V) e Contra os Músicos (Livro VI).
A editora Unesp acaba de publicar uma cuidadosa edição bilíngue de Contra os gramáticos, em que Sexto discute o papel crucial do uso comum das palavras para a compreensão da linguagem e para o bom filosofar. Atento aos sentidos técnicos e problemáticos com que os dogmáticos usavam as palavras, ele critica a tentativa de uma gramática geral, de princípios universais, e defende uma concepção convencionalista da linguagem.
Para Sexto, o critério cético é unicamente fenomênico e, através dele, vive-se uma vida amparada por quatro diretrizes básicas: ser guiado pela natureza; ser constrangido pelas paixões; observar as leis e costumes da cidade; instruir-se nas artes.
Contra os gramáticos insere-se na discussão do filósofo sobre a crise dos modelos educacionais, ou seja, em sua crítica das disciplinas escolares. A gramática é primeiramente analisada no ínterim dessa crítica mais ampla, pois é um dos primeiros ensinamentos, transmitida a partir da primeira infância, por ser uma espécie de primeira disciplina para se ensinar outras artes e, por fim, porque, segundo Sexto Empírico, os gramáticos vangloriam-se de sua arte encontrar-se acima das demais ciências
Conforme contextualiza o professor de filosofia da UFRN, Jaimir Conte, em artigo, publicado na revista Cult: “Embora os céticos gregos tenham produzido uma grande quantidade de escritos, poucos sobreviveram. Quase tudo o que sabemos sobre o ceticismo antigo se deve principalmente às obras tardias de Diógenes Laércio (século 3), Cícero (século 1 a.C.) e especialmente às obras do médico e filósofo grego Sexto Empírico (século 2), assim como aos escritos de seus oponentes, como Santo Agostinho (século 4), e a referências dispersas presentes numa grande variedade de fontes. O ceticismo formulado nesses escritos exerceu pouca influência sobre o pensamento medieval depois de Agostinho e, na verdade, eles estiveram, em grande medida, inacessíveis até serem recuperados durante o Renascimento”.
A pesquisadora Ana Paula Grillo El-Jaick, por sua vez, contextualiza a discussão que norteia a obra em questão; entre outros comentadores, no artigo “Sobre Contra os Gramáticos, de Sexto Empírico”, publicado na revista de filosofia Dois pontos, ela cita Frainçoise Desbordes, segundo quem Sexto Empírico acusa que o filosofar cético é ameaçado pelos gramáticos, na medida em que estes colocam em questão a linguagem e a consideram como um objeto de estudo. Em Contra os gramáticos as “formas argumentativas de Sexto Empírico – entre elas a discordância, o regresso ao infinito, o raciocínio circular – pertencem ao arsenal cético, mas não levam à conclusão tradicional da suspensão do juízo”, diz El-Jaick. O filósofo empenha seu texto a “demonstrar que ela é não somente inútil, mas nociva; não se trataria de dizer que as proposições da gramática são indecidíveis, mas que elas são falsas – e falsas porque contradizem outras proposições que ele tem por verdadeiras: como a impossibilidade de ser a gramática, como querem os gramáticos, uma ciência; como incapacidade de se ter, através da gramática, um critério de correção, etc. Contra os gramáticos é estruturado como um tratado gramatical: definição de gramática, as partes da gramática, o tratamento de cada uma dessas partes. Sexto Empírico sustenta que há na verdade duas gramáticas: uma geral e outra particular. A gramática geral se refere ao conhecimento das letras – sejam gregas ou bárbaras. Essa gramática se compromete a ensinar o alfabeto e suas combinações, sendo, assim, uma especialidade relativa à leitura e à escrita”. À gramática dedicada à arte de ler e escrever, contrapõe-se outra gramática, que professa conhecimentos mais profundos, sobre a natureza da própria gramática e as “partes do discurso”. Sexto deixa expresso que não critica a primeira, que tem utilidade para a vida, pois que auxilia a memória e outros ensinamentos; sua crítica cética recai sobre a outra gramática e, por decorrência, aos gramáticos; e acaba por mostrar que a arte da gramática é inexistente. Segundo El-Jaick, seguindo “os modos pirrônicos, entre as estratégias pirrônicas mais recorrentes de que Sexto Empírico se vale para reforçar suas conclusões pela não-existência e inutilidade da gramática, está a de mostrar que o argumento de seu oponente leva a um regresso ao infinito”. A argumentação de Sexto, a pesquisadora o mostra, é de certa maneira espiralada, pois não atinge “a gramática que ensina a leitura e a escrita ao mesmo tempo em que não poupa a gramática que se pretende ciência, ou seja, que vê a linguagem como um objeto – domesticável – de estudo. Isso porque, ao contrapor técnica e uso comum, Sexto Empírico critica e desqualifica a técnica, isto é, a capacidade de se teorizar sobre a linguagem, ao mesmo tempo em que não está, necessariamente, desqualificando a linguagem per si, a linguagem que usamos cotidianamente”.
Um dos filósofos modernos muito influenciado por Sexto Empírico foi Montaigne. Segundo o professor da UFPR, Luis Eva, no artigo “Montaigne, leitor de Sexto Empírico: a crítica da filosofia moral” “para além das consideráveis similaridades, o modo como Montaigne relaciona razão, natureza e costume, confere um perfil próprio à sua reconstrução do pirronismo, particularmente visível na sua compreensão da oposição entre critério de verdade e critério de ação”. Para o professor, “essa distinção, proveniente do pirronismo, ocupará um lugar central na sua reflexão moral”. Outro professor, Jaimir Conte, no supracitado artigo, também comenta a filiação filosófica de Sexto: “Foram esses textos que mais contribuíram para o surgimento do pensamento cético no início da filosofia moderna, em especial nos escritos de Montaigne (1533-1592). Tão forte foi a impressão causada pela leitura de Sexto que, além de retomar e desenvolver nos Ensaios os principais argumentos da tradição cética compilados por Sexto, Montaigne fez gravar nas vigas de sua ‘biblioteca’ várias sentenças extraídas das Hipotiposes e, numa medalha, a famosa divisa ‘Que sais-je?’, na qual figurava do outro lado uma balança com os dois pratos em equilíbrio, símbolo da suspensão do juízo e do tema central das Hipotiposes: a eqüipolência, ou igual peso dos diferentes pontos de vista. A ‘crise pirrônica’ que Montaigne teve ao ler as Hipotiposes foi vivida por vários filósofos posteriores, mesmo por aqueles, tais como Descartes (1596-1640) e Berkeley (1685-1753), cujo empreendimento foi, claramente, o de refutar o ceticismo. A força e o impacto do pirronismo foram tão grandes que refutar o ceticismo tornou-se um dos principais desafios da filosofia moderna. Devido a seu radical enfoque contrário às pretensões da metafísica, e como resultado também das obras de David Hume (1711-1776), que levou a lógica dos argumentos céticos encontrados em Sexto e em Descartes a suas conclusões mais extremas, o pirronismo tornou-se um aspecto permanente do pensamento filosófico dos séculos subseqüentes até os nossos dias”.
Ana Paula El-Jaick, em outro artigo, aponta ainda uma aproximação entre Sexto Empírico e o linguista Ferdinand de Saussure, que, segundo ela, “em suas anotações, afirma que uma palavra só existe verdadeiramente por sua confirmação de seu emprego – poderíamos dizer, de forma mesmo provocativa: pela confirmação de seu uso. Isso quer dizer que ele parece admitir que a palavra só existe no acontecimento de sua performatividade. E sua identidade só pode ser abstraída pela regularidade de seu uso”. El-Jaick sugere uma aproximação entre o linguista e o Sexto Empírico, apoiada no fato de que “uma das grandes críticas pós-estruturalistas a Saussure” foi justamente o que ele definiu acerca do objeto da linguística: “uma língua absolutamente abstrata, como um sistema de signos linguísticos que desconsideraria a língua em uso”.
Em 2013, a editora Unesp já havia lançado uma tradução de Sexto Empírico, do texto Contra os retóricos, também em edição bilíngue. Alí, Sexto mostra, a partir de uma perspectiva pragmática, como a discussão sobre a Retórica é central no pensamento grego e como influenciou o campo de estudos da linguagem – que, atualmente, passa pela Linguística, pela teoria literária, pela Filosofia e pela teoria da comunicação. Como nas demais obras, o filósofo investe contra o dogmatismo, utilizando como recurso os argumentos das próprias doutrinas, contrapondo-os de modo que se refutem uns aos outros e anulem-se, questionando a presunção da sabedoria e do conhecimento, apontando as aporias, controvérsias e disputas em torno do que seria a verdade; inversamente, ele também ataca a negação radical da possibilidade do conhecimento, numa espécie de dogmatismo negativo.
Autor: Sexto Empírico
Editora: Unesp
Preço: R$ 40,60 (254 págs.)