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Ensaio sobre o medo e os fins

17 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A pergunta do título é desconcertante: Há mundo por vir?. O livro de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, lançamento co-editado pela editora Cultura e Barbárie e pelo Instituto Socioambiental (ISA), propõe uma reflexão séria a respeito dos atuais discursos sobre “o fim do mundo”.

Lasar Segall

Atualmente, os materiais e análises sobre as causas (antrópicas) e as consequências (catastróficas) da “crise” planetária vêm se acumulando com extrema rapidez, mobilizando tanto a percepção popular quanto a reflexão acadêmica. Os discursos que traçam prognósticos fatalistas são pelos dois autores tomados como experiências de pensamento, como tentativas de invenção, não necessariamente deliberadas, de uma mitologia adequada ao presente.

Bruno Latour, no texto de orelha, analisa: “Aquilo que Isabelle Stengers chama de intrusão de Gaia é algo que nos faz perder todas as nossas referências. Sim, Gaia é uma intrusa, no sentido de que nada havia sido preparado, pensado, planejado, previsto, instituído para vivermos sob seu signo. Nada, ao menos, durante aquele período histórico que não cabe mais chamar de Modernidade. Havia, decerto, a Natureza, aquela grande figura fria, eterna e distante, capaz de ditar suas leis a todas as ações humanas — inclusive as leis da economia. Mas essa divindade nos parece, hoje, demasiado antiquada, de um antropocentrismo excessivamente ingênuo”. De acordo com o professor, este é um ensaio de “mitocosmologia”, desenvolvido por “um antropólogo meio filósofo, uma filósofa meio ecologista”. Segundo Latour, o “ensaio principia como um inventário, uma espécie de visita guiada ao pátio dos milagres das monstruosidades filosóficas e literárias em curso, algumas delas bastante em voga, outras menos conhecidas, mas todas sintomáticas do estado de alarme atual. Em seguida, passa-se à antropologia, àqueles mundos indígenas que nunca precisaram se dotar nem de uma Natureza, nem de uma Cultura. O tom muda, porque mudam os mundos. Finalmente, é preciso passar à política. É com ela e por ela que o livro conclui, evocando a mobilização febril de todos os coletivos que sabem que já não têm mais o tempo a seu favor. E assim tudo recomeça — ou tudo recomeçará, deixando para trás muito daquilo em que nos habituáramos a acreditar. Este livro deve ser lido como se toma uma ducha gelada. Para nos acostumarmos. Para nos prepararmos. Esperando o pior”.

Investigando qual a condição atual da tradição cultural ocidental, os autores a embatem com a maneira como ela é compreendida pelas culturas indígenas. A filosofia moderna pensou Deus, o homem e o mundo, porém as três noções encontram-se em crise: Deus morreu; a noção de homem moderno morreu; o mundo morrerá.

Davi Kopenawa, líder dos Yanomami, no seu livro A queda do céu diz: “os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”. Essa frase, para Viveiros de Castro e Danowski, contém em si uma imagem do pensamento, uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do próprio projeto civilizatório. Para os Yanomami, o pensar é, essencialmente, sonhar: sonhar com o que não é humano, sair da humanidade. Para nós, segundo Davi Kopenawa, o pensamento está concentrado no “mundo da mercadoria” e só vemos a nós mesmos: os brancos só sonham consigo mesmos, não saem de si mesmos, não saem da humanidade. Mesmo o pensamento ocidental é introjetado, investiga a cognição, a imaginação, o entendimento do próprio homem. Na visão dos indígenas, a civilização ocidental cria máquinas e objetos prodigiosos, mas, sociologicamente, trata-se de povos agressivos, escandalosos, toscos nas interações. Estamos, assim, prensados contra nós mesmos e contra os outros povos. Nosso narcisismo é incurável, outros povos não podem nos ajudar e ameaçamos levar a todos para um abismo. A perspectiva de uma crise ambiental em escala mundial nos coloca em uma situação parecida com a dos índios: corremos o risco de sermos dizimados por nós mesmos. Eis porque o fim do mundo é um tema riquíssimo do ponto de vista filosófico e político: o que está acabando é o mundo que começou em 1500. Trata-se do fim da era moderna.

A discussão tem ecos metafísicos e ontológicos, além de sociológicos. Uma questão em voga sobre determinação de civilizações, comunidades e territórios indígenas, ilustra um pouco da dimensão filosófica e política da discussão. Em entrevista – “Exceto quem não é” – concedida a Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogerio Duarte do Pateo, Uirá Felipe Garcia, em 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA), Eduardo Viveiros de Castro, discutindo a noção de definição indígena, diz: “essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo”. Para o antropólogo, a “Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional”. Segundo Viveiros de Castro, não há “culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afro-descendentes, ou quem quer que seja — pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam. Ou talvez seja uma coisa que só os brancos podem ser (pior para eles). A autenticidade é uma autêntica invenção da metafísica ocidental, ou mesmo mais que isso — ela é seu fundamento, entenda-se, é o conceito mesmo de fundamento, conceito arqui-metafísico. Só o fundamento é completamente autêntico; só o autêntico pode ser completamente fundamento. Pois o Autêntico é o avatar do Ser, uma das máscaras utilizada pelo Ser no exercício de suas funções monárquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos”.

Segundo Alexandre Nodari, em artigo, a “questão maior talvez seja a do ponto de vista: Nós quem, cara pálida?, parecem perguntar ao seu principal interlocutor, de modo sutil mas provocante ao longo desse ensaio, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, os quais […] insistem a todo momento em colocar o dedo na ferida: quem é esse nós (o “sujeito” que se vê novamente na Era do Descobrimento, o mesmo “sujeito” do Descobrimento), quem é o anthropos do Antropoceno? E quem são os outros, quem são esses “nós-outros” que estavam do lado de lá (de cá) do Descobrimento, para os quais este foi uma Conquista, um primeiro – de muitos – fim de mundo? Há mundo por vir? Ensaio sobre o medo e os fins, ao passar em revista algumas formulações – estéticas, filosóficas, etc. – da mitologia contemporânea em torno do fim do mundo, tornada realidade tangível (a “mitofísica” contemporânea, pra usar uma expressão genial dos autores), não adota a posição do demiurgo criador da ordem (Nomos), mas do deceptor que confunde as divisões (amigo-inimigo), que divide as divisões, que desobedece as hierarquias: um exercício de bricolagem em que se encontram os Singularitanos e os Maya, formulações de Meillassoux e um mito aikewara, Melancholia e Chiapas, Gaia e Pachamama”. De acordo com Nodari,“são justamente linhas de fuga (e não identidades e oposições) que Danowski e Viveiros de Castro apresentam a partir desses encontros de fins de mundo: a possibilidade (e talvez a necessidade) de um “bom encontro” da nossa (?) mitologia com a ameríndia, para se contrapor ao “mau encontro” da Descoberta (o genocídio americano, mas também a polícia mundial que a nova Era pode trazer). […] O que se questiona é a própria oposição binária (o princípio da não-contradição) das identificações: o que está em jogo é um exercício de descentramento, em que o “ser-enquanto-outro” do pensamento ameríndio permite repotencializar também aqueles momentos do pensamento ocidental em que o Ocidente difere de si mesmo (Deleuze e Guattari, a monadologia panpsiquista de Gabriel Tarde, a cosmologia de Peirce – e, eu acrescentaria, talvez mesmo a oikeiosis estóica, já que estamos falando de ecologia), em que a alteridade deixa vestígios erráticos que são roteiros de um mundo por vir”.

 

 

HÁ MUNDO POR VIR?

Autores: Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro
Editora: Cultura e Barbárie, co-edição com o Instituto Socioambiental (ISA)
Preço: R$ 35,00 (176 págs.)

 

 

 

 

 

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