O poeta português Herberto Hélder (nascido em Funchal, em 23 de Novembro de 1930) é considerado um dos mais inventivos autores da poesia contemporânea. Figura em volta da qual paira uma atmosfera mística, concedeu sua última entrevista em 1968 e desde então vive em auto-reclusão em Lisboa, com a mulher, Olga. Em 1994, recebeu o Prêmio Pessoa, que recusou, como recusa todos os prêmios que recebe – “Seria vil aceitar, por causa do dinheiro”, disse. Neste ano, seu nome foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura.
Neste mês de junho, ele lançou, pela Editora Porto, de Portugal, seu mais recente livro, A morte sem mestre. É notável a longeva produtividade do autor, cujo livro anterior, Servidões, havia sido lançado apenas um ano antes. Sua poesia, tal qual sua personalidade, é enigmática. Uma constante transgressão regula a pontuação e submete os padrões à desorganização e a um fluxo verbal que encanta e abala e cria uma linguagem única. Ao abrir A morte sem mestre, o leitor encontra a advertência do poeta: “Tudo quanto neste livro possa parecer acidental é de facto intencional”; ao que acrescenta: “Peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido/seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro”.
O livro traz 28 poemas inéditos e um CD com cinco poemas lidos pelo autor. Em nota final, o editor explica o projeto gráfico da capa: “Herberto Helder tem por hábito encadernar os seus livros com papel de embrulho castanho, escrevendo por fora em caneta de feltro vermelha o título e o nome do autor. A sobrecapa da presente edição evoca esse hábito, reproduzindo a sua caligrafia”.
Como o título sugere, o poeta nos lembra que a morte não se ensina e não se aprende, que se está sempre sozinho diante dela ela e que, por isso, é e será sempre um abandono.
Segundo Luís Miguel Queirós, em artigo publicado no jornal português Público, “A Morte Sem Mestre é um objecto suficientemente estranho para provocar reacções desencontradas. Há um efeito de exposição da circunstância biográfica ainda mais radical do que em Servidões, passagens cuja força parece residir num exasperado e despido confessionalismo – “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!” –, mas também alguns desses poemas que, logo à primeira leitura, e antes de quaisquer digestões mais reflectidas, sabemos imediatamente que são geniais. Pela energia e pelo ritmo, pelo poder imaginativo, pela invenção verbal, mas também por um efeito de estranheza que é paradoxalmente acompanhado pela intuição de que batem certo com a mais funda verdade da obra. Poemas que não se pode imaginar mais ninguém a escrever, mas para os quais nunca estamos preparados, mesmo que tenhamos lido toda a poesia do autor”. No mesmo artigo, Queirós cita, entre outras, opiniões dos críticos Gastão Cruz e Rosa Martelo: o primeiro, considera A morte sem mestre “um único poema” e analisa que é do desequilíbrio, do excesso e porventura da imperfeição, que a obra “retira uma parte do seu extraordinário fulgor”. Rosa Martelo “lembra que Herberto Helder “sempre viu no erro a possibilidade de um surpreendente acerto: o acerto de uma ‘impuração’”, neologismo que descreve bem o movimento deste livro, que abre significativamente com um “apelo ao ‘bom leitor impuro’”. E deixemos a última palavra a Gastão Cruz: “A morte poderá não ter mestre, mas a poesia tem-nos, e Herberto Helder está, indubitavelmente, entre os seus maiores”.
Sobre a edição de A morte sem mestre pela Editora Porto, António Guerreiro, em artigo escrito ao mesmo jornal, analisa o isolamento de Herberto Helder como atitude crítica compreensível: “Uma sociologia literária empírica e imediata dá-lhe toda a razão: no acesso e até na legitimação da obra literária acumularam-se as intereferências dos factores externos, extra-literários. Porém, o impoluto poeta Herberto Helder foi, desde há algum tempo, atraiçoado por uma lógica editorial que apela ao valor e ao fetichismo da mercadoria. E isso verificou-se com toda a evidência no ano passado, quando se assistiu a uma corrida pouco edificante para a aquisição de Servidões. Numa semana, venderam-se cinco mil exemplares, como se se tratasse de um produto de especulação financeira. Os livros de Herberto Helder entravam assim numa bolsa de valores que nada tem a ver com as leis da consagração de um escritor. O anúncio de que não haverá uma segunda edição justificam a corrida, se aceitarmos que o produto ganhou valor de provinciano prestígio e de falsa raridade”. Identificando o mesmo oportunismo editorial na edição de A morte sem mestre, ironiza: “Correi, senhores, antes que esgotem as metonímias do corpo do poeta, impressas em capa dura e papel de embrulho enriquecido. E já que era alta a maré de generosidade metonímica porque é que não acrescentaram à embalagem tão demagogicamente volumosa, como gostam os coleccionadores de literatura-bibelot, um pêlo púbico do autor, em homenagem ao “Anjo Príapo” e à “Nossa Senhora Côna” que são invocados no primeiro poema? Que sabemos nós da participação do autor neste processo? Nada que nos permita dizer mais do que isto: o poeta impoluto fica perigosamente exposto”.
De fato, o livro, infelizmente, em um mês já está esgotado.
No Brasil, a Editora Iluminuras publicou o livro O corpo o luxo a obra, com poemas de Herberto Helder selecionados e apresentados por Jorge Henrique Bastos – há uma visualização do livro disponível, porém, ele também está esgotado e, segundo a editora, sem previsão de reimpressão. Disponível apenas em sebos, o volume conta com um ensaio de Maria Lúcia Dal Farra, autora do livro A obra ao rubro de Herberto Helder.
_____________
Porque eu sou uma abertura,
porque as noites cruzam os cometas,
porque a minha pedra com os lados frios contra as faúlhas,
porque abre as válvulas e se queima.
Alguém com os dedos na cabeça dando a volta à criança,
metendo-lhe mais força pelo fogo,
criança com um rastilho:
ou muita resistência na armadura, ou
peso, ou muita leveza, ou
dulcíssima:
ou fósforo, enxofre, pólvora, sopro, a farpa de outro
– e o ourifício que traz para o visível
o segredo: gota
com a trama de pedra calcinada em torno,
a pedra só abertura pela potência
de um pouco de pólen
oculto.
Porque riscam com áscua,
porque até à linha pulmonar as labaredas a iluminam,
porque um hausto de sangue a ilumina em toda a linha cardíaca,
porque as pontas irrompem do núcleo
do ouro pequeno.
– Herberto Helder, Ofício Cantante – Poesia completa, 2009
_____________
Autor: Herberto Helder
Editora: Porto
Preço: 22,00¢ (64 págs.) – Esgotado
Autor: Herberto Helder
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 34,90 (160 págs.)