Guia de Leitura

As ilhas

31 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A ilha tem sentidos metafóricos que vão da interiorização subjetiva mais profunda, à possibilidade de alcançar com a vista a totalidade dada a uma distância suficientemente grande.

Destino trágico dos resquícios de naufrágios, reduto de isolamento, lugar terrestre de intensa onipresença marinha e daquilo que ela tem de lúdica, inebriante e misteriosa.

 

Gilles Deleuze, "A ilha deserta"

Gilles Deleuze, “A ilha deserta”

O livro A ilha deserta é composto por uma sequência heterogênea de textos de Gilles Deleuze. São vários textos esparsos, publicados entre 1953 e 1974; pequenas pérolas, entre textos raros, resenhas, entrevistas, textos circunstanciais, depoimentos e conferências, há artigos luminosos sobre Bergson, Kant, Nietzsche, Hume, uma comovente homenagem a Sartre – “Ele foi meu mestre” –, uma conversa ensandecida sobre pintura –“Faces e Superfícies” – e o enigmático e belíssimo texto, inédito, que dá título ao volume, “Causas e Razões da Ilha Deserta”, que assim se inicia:

“Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranquilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe, distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem”.

 

Carlo Ginzburg, "Nenhuma ilha é uma ilha"

Carlo Ginzburg, “Nenhuma ilha é uma ilha”

Nenhuma ilha é uma ilha, do historiador Carlo Ginzburg, reúne quatro ensaios sobre a literatura inglesa. Na introdução, Ginzburg diz ser um grande cultivador do gênero ensaístico, e buscar aliá-lo, ao longo dos textos, às discussões em escala “micro-histórica”, buscando evidenciar o caráter não absolutamente insular que rege a concepção da literatura inglesa.

O primeiro ensaio, “O velho e o novo mundo vistos da Utopia”, analisa a obra Utopia, de Thomas More, buscando suas origens nos textos de Luciano de Samósata, autor traduzido e admirado tanto por More como por seu amigo Erasmo de Rotterdam. Segundo Ginzburg, é possível estabelecer uma filiação, do texto de Thomas More, com o humor refinado e o estilo satírico característico das obras de Luciano. O segundo ensaio, “Identidade como alteridade”, se debruça sobre a poesia inglesa, analisando as rimas características da poesia elisabetana. Aqui, o historiador mostra o diálogo com outras línguas, sobretudo a influência da prosa de Montaigne sobre a formação dos versos ingleses. O terceiro ensaio dedica-se à leitura do ilustre A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne, o qual, segundo Ginzburg, tem no dicionário filosófico de Pierre Bayle sua principal referência e, também, o mesmo estilo, utilizando em larga escala as abstrações reflexivas.

Diz o autor: “Nos dois primeiros capítulos falou-se de ilhas – ilhas inventadas, como a de Utopia, ou reais, como a Inglaterra – de uma perspectiva não insular. Contra o lugar-comum corrente segundo o qual todas as narrativas pertenceriam em alguma medida à esfera da ficção, procurou-se mostrar que existe uma relação complexa entre as narrativas inventadas e as narrativas com pretensão à verdade. A ilha imaginada de Utopia permitiu que Thomas More percebesse (e denunciasse) as extraordinárias transformações em curso na sociedade inglesa. A defesa da rima como procedimento literário diante das acusações de barbárie tinha lugar em uma ideologia imperialista nascente, voltada a acentuar a distância cultural e política entre as ilhas britânicas e o continente europeu. Verdade e ficção, examinadas de uma perspectiva não insular, encontram-se igualmente no centro deste terceiro capítulo, dedicado ao Tristram Shandy de Laurence Sterne”.

O quarto ensaio, “Tusitala e seu leitor polonês”, aponta uma relação entre um conto do escritor  Robert Louis Stevenson – Tusitala, ou seja, “aquele que conta histórias” –, intitulado “O diabo na garrafa”, e a obra do etnólogo anglo-polonês Malinowski. A história foi inspirada em uma lenda que Stevenson ouviu de tribos do Pacífico Sul, tribo cuja particular organização social, sistema de ritos e modo de vida inspiraram as pesquisas do etnólogo.

Para desconstruir o pretenso isolamento literário da Inglaterra e investigar a formação da literatura e da identidade nacional inglesas, Ginzburg alia os estudos de caso à sua peculiar erudição. Desdobrando os sentidos da “ilha, real ou imaginária, evocada no título”.

 

Carlos Drummond de Andrade, "Passeios na ilha"

Carlos Drummond de Andrade, “Passeios na ilha”

Passeios na ilha foi o terceiro livro de prosa de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente em 1952. O volume reúne textos históricos, crônicas, aforismos, poemas em prosa e crítica literária.

A “ilha” a que o título se refere tem sentido metafórico: “Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude, que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente”.

É dali que o poeta interpreta a vida literária brasileira, desenvolvendo em sua prosa um tom que combina a compreensão e a ironia historicamente perspectivadas. Os textos são fruto da colaboração de Drummond com jornais e revistas entre as décadas de 1930, 40 e 50, sobretudo o com Correio da Manhã – o poeta disse que estes textos não foram escritos, mas se foram escrevendo pelos domingos e publicados no Correio da Manhã, textos errantes, que caminham por diferentes formas e temas. Segundo Paulo Werneck, em resenha publicada no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, a maioria dos textos desses Passeios na ilha “confina com o ensaio literário, à maneira do que faz Manuel Bandeira em “Crônicas da Província do Brasil” (1937), espécie de ensaísmo confessional que abre as portas da constituição de sua obra poética”. Ali, diz o crítico, “se adivinha a gestação de “Claro Enigma“, lançado um ano antes”.

O livro abre caminho crítico para pensar as posições da chamada arte participante, alardeadas pela militância do Partido Comunista fora e dentro do Brasil, a atitude de cultivo estrito da forma estética defendida pelos poetas da geração de 1945. Também registra seus passeios por Minas, suas visitas a Ouro Preto, Sabará e Congonhas do Campo – a partir Das quais, ele escreveu alguns dos mais belos dentre seus textos em prosa, como “Contemplação de Ouro Preto” e “Colóquio das Estátuas”, no qual conversa com os profetas que Aleijadinho fez em pedra-sabão, “mineiros de há 150 anos e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos”.

Na ilha de Drummond, “nenhuma central elétrica de milhões de quilowatts será capaz de produzir aquilo de que precisamente cada um de nós carece na cidade excessivamente iluminada: certa penumbra”.

 

Thomas More, "Utopia"

Thomas More, “Utopia”

Utopia, de Thomas More, é uma ilha regida por basicamente dois princípios, a inexistência de propriedade privada e a supremacia dos interesses coletivos. Um dos livros mais influentes de todo o estudo vindouro de filosofia política, a Utopia satiriza a sociedade europeia, apontando a propriedade privada como a fonte das mazelas humanas – por isso, é proibida por lei naquela ilha idealizada, justa e igualitária, onde o cultivo da terra é feito em intervalos de dois anos por qualquer cidadão.

A ilha assemelha-se à Inglaterra, como seu negativo. Em Utopia é conferido um lugar de destaque aos estudos de ciência e de filosofia; a tolerância religiosa é pregada, apesar de que todos são obrigados a crer na Divina Providência e na imortalidade da alma; desaparecem o egoísmo, o belicismo, a depravação moral que assolavam a Inglaterra do século XVI. A razão é o fundamento político. O trabalho, assim como a riqueza, deveria ser distribuído igualmente a todos – na Inglaterra de seu tempo, diz More, constrangedoramente familiar, se o verdadeiro exército de classes inúteis, compostas pelo clero, pela nobreza militar e pelos proprietários de terra, também trabalhassem em algo produtivo, haveria suprimentos suficientes para todas as necessidades da sociedade, assim como acontece em Utopia.

A metáfora geográfica da ilha explica o sentido da idealização de Thomas More: Utopia estaria localizada no Novo Mundo – seria alcançável, apesar de que, para tanto, exigiria uma empresa complexa. A ilha simboliza aqui a esperança de um novo tempo, orientado pelos princípios do Renascimento e do Humanismo, instaurado a partir da possibilidade de conceber uma sociedade melhor, em um novo lugar, isolado, alheio às vicissitudes morais e sociais europeias.

A ilha representa o outro. A despeito de sua apresentação aparentemente fantasiosa, a obra é estritamente racional e deve sua concepção muito à República de Platão, também governada de maneira justa pelo uso da razão. Uma obra de teoria política e moral, que tornou-se metáfora de sua própria ideia – utópica, insular.

 

Jean Grenier, "As ilhas"

Jean Grenier, “As ilhas”

As ilhas, de Jean Grenier (1898 – 1971) foi publicado pela primeira vez em 1933. O volume, para Albert Camus, amigo e aluno de Grenier na Argélia antes da guerra, foi a leitura arrebatadora que lhe despertou o ímpeto de tornar-se escritor. Como analisa o escritor Gilles Lapouge, em resenha publicada no jornal O Estado de São Paulo, diz: “Claro que Jean Grenier e Albert Camus são filósofos, mas a sua grandeza é que o filósofo, nos dois casos, foi engolido, como se digerido, pelo escritor. O que não significa que a carga filosófica de As ilhas ou O estrangeiro seja ínfima. Não. Mas ela é comunicada por imagens, alegrias intensas ou soluços, o movimento branco de uma nuvem, a pele das mulheres”.

No prefácio que Camus escreveu para a reedição de 1959 de As ilhas, pontua que o livro representou para sua geração uma iniciação ao desencanto do mundo. Segundo outra resenha, escrita por Manuel da Costa Pinto para o jornal Folha de São Paulo, um “desencanto paradoxal, que reafirmava a volúpia pelos “frutos da terra” (para mencionar o livro de André Gide que serviu de bússola para o hedonismo pessimista de Grenier e Camus)”. Os textos de Grenier são, para o crítico, “portadores de uma filosofia ao rés do chão, pequenas cenas semelhantes a um diário (passeios por cidades europeias, a contemplação de um gato, a conversa com um açougueiro moribundo) desencadeiam reflexões sobre “o pouco de realidade das coisas”, a sensação de “vacuidade”, enfim, lugares-comuns da inquietação metafísica”.

Entre as suas ilhas, Grenier diz: “Perguntam-te por que se viaja. A viagem pode ser para os espíritos que carecem de uma força sempre intacta, o estimulante necessário para despertar sentimentos que na vida quotidiana não se manifestavam. Viaja-se, então, para recolher, num mês, num ano, uma dúzia de sensações raras, eu ouço aquelas que podem suscitar em você este canto inferior sem o qual nada do que se experimenta vale.

[…] Portanto, pode-se viajar não para evadir-se, algo impossível, mas para se encontrar. A viagem torna-se então um meio, como os jesuítas empregaram os exercícios corporais, os budistas o ópio e os pintores o álcool. Uma vez que se serviu disso e que se atinge o limite, empurra-se com o pé a escada que te serviu para subir. Esquece-se as jornadas enjoativas da viagem marítima e as insônias do trem quando se chegou a se reconhecer (e para além de si mesmo outra coisas, sem dúvida), e este “reconhecimento” não está sempre no fim da viagem que se faz: na verdade, quando ele ocorre, a viagem está concluída.

“É bem verdade, portanto, que nessas imensas solidões em que um homem deve atravessar do nascimento à morte, existem alguns lugares, alguns momentos privilegiados em que a visão de uma região age sobre nós, como um grande músico sobre um instrumento banal que ele revela, falando propriamente a si mesmo. O falso reconhecimento é o mais verdadeiro de todos: reconhece-se a si mesmo: e quando diante de uma cidade desconhecida a gente se admira como diante de um amigo que se tinha esquecido, é a imagem verídica de si mesmo que se contempla”.

 

 

Ogígia dos sonhos, moradia de Calypso, Ítaca do regresso estimado, a Ilha das Sereias, cujo encanto é mortal. Desde os primórdios da filosofia e da literatura, discorre-se sobre as ilhas, redutos metafóricos daquilo que se aspira, também do que é instransponível.

“[…] Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no fundo de sua iluminação?… Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o da liberdade nas ilhas. E, contentor do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses que se acomodam à realidade, elidindo-a?

A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago com a graça de uma flor criada para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano. Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades de ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos. […]” – Passeios na ilha, Drummond.

 

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