A literatura de cordel é uma das mais ricas e genuínas formas de literatura popular mantidas no Brasil. Espontaneidade e rigidez na métrica pontuam as narrativas com a melodia poética das rimas, característica inconfundível. Contam seus cantos e contos que, oriunda de Portugal, chegou com a colonização à Bahia e, dali, irradiou-se para os demais estados do nordeste brasileiro e recebeu o nome de poesia popular.
Márcia Abreu, professora da UNICAMP, organizadora do livro Histórias de Cordéis e Folhetos (publicado pela editora Mercado de Letras), busca, entretanto, confrontar as duas produções culturais frequentemente associadas – a literatura de cordel portuguesa e a literatura de folhetos no nordeste do Brasil –, sugerindo um equívoco na hipótese de associação entre elas. Márcia indica, ao longo do estudo traçado pelo livro, a impossibilidade dessa associação e propõe motivações para o que ela identifica como uma “teoria da vinculação” entre ambas as formas literárias.
O historiador Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior propõe um debate entre a posição crítica de Márcia e outras visões sobre o desenvolvimento da literatura de cordel. Ele cita o livro Errantes da selva, da historiadora Isabel Guillen, e sua análise sobre a importância dos poetas de cordel na construção de narrativas sobre o nordeste brasileiro; a partir de então, tenta discutir a relevância cultural do cordel enquanto representação linguística e social do sertão nordestino. Sobre a origem do cordel, ele destaca dois trabalhos divergentes, o de Márcia Abreu e o de Irani Medeiros, que apela ao senso comum para defender a origem europeia do cordel (no livro No reino da poesia sertaneja: antologia de Leandro Gomes de Barros): “[…] a literatura de cordel chegou através dos colonizadores lusos, em folhas soltas ou mesmo em manuscritos. Só muito mais tarde, com o aparecimento das pequenas tipografias fim do século dezenove -, a literatura de cordel surgiu e fixou-se no Nordeste como uma das peculiaridades da cultura regional”. Márcia Abreu, em contrapartida, indica a falta de estudos sistemáticos de análises comparativas.
A despeito, contudo, das discussões sobre as possíveis influências iniciais ou propulsoras do cordel, sua relevância cultural é ponto pacífico. Os cordelistas conseguiram expressar e retratar sua realidade aliando um profundo perspectivismo social a uma moral própria reguladora – por exemplo na figura do herói preenchida pela do cangaceiro – e à subjetividade compartilhada nas referências locais de memória coletiva, ao ponto da identidade dos autores confundir-se com a de seu grupo. O cordel, assim, não restringiu sua relevância ao aspecto documental, numa linguagem própria que selava a total cumplicidade, inclusive em termos de sensibilidade simbólica, entre autores, contadores, leitores e ouvintes, consolidou-se também manifestação poética e lúdica.
No artigo “Então se forma a história bonita” – relações entre folhetos de cordel e literatura erudita, Márcia Abreu analisa: “A literatura de folhetos produzida no Nordeste brasileiro desde o final do século XIX coloca homens e mulheres pobres na posição de autores, leitores, editores e críticos de composições poéticas. Em geral, associam-se esses papéis a pessoas da elite – se não financeira, ao menos intelectual –, mas, no caso dos folhetos, gente com pouca ou nenhuma instrução formal envolve-se intensamente com o mundo das letras, seja produzindo e vendendo folhetos, seja compondo e analisando versos, seja lendo e ouvindo narrativas. O sucesso dos folhetos deve-se a um conjunto de fatores, entre os quais se destaca a forte relação com a oralidade mantida por essas composições […] escritos em verso compostos segundo um padrão que favorece a realização de sessões coletivas de leituras em voz alta. Ainda que a forma seja efetivamente fundamental, a superioridade dos folhetos deve-se também ao fato de eles apresentarem as notícias interpretadas segundo os valores compartilhados pelo público. Por isso, eles parecem superiores aos jornais em que se apresentam notícias em prosa”.
Há quem não saiba, mas a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ABLC, existe há mais de vinte anos. A ABLC mantém um site com notícias, acervos de imagens das gravuras e matrizes, cordéis digitalizados, informações sobre a história da literatura de cordel (ou, ao menos, uma versão da história), sobre suas métricas e sobre alguns dos principais cordelistas.
A editora Massanguana, da Fundação Joaquim Nabuco, publicou o belo livro Crostas do sol, com rica ilustração das xilogravuras dos cordéis. Uma boa perspectiva panorâmica numa edição cuidadosa – desproporcional ao baixo preço.
O site universia disponibiliza mais de quarenta livros de cordel para download gratuito – Confira aqui.
HISTÓRIAS DE CORDÉIS E FOLHETOS
Autor: Márcia Abreu (org.)
Editora: Mercado de Letras
Preço: R$ 46,00 (152 págs.)
Autor: Roberto Gréllier
Editora: Editora Massanguana – Fundação Joaquim Nabuco
Preço: R$ 15,00 (161 págs.)
Trecho de um cordel:
Sobrinho:
Provo que eu sou navegador romântico
Deixando o sertão para ir ao mirífico
Mar que tanto adoro e que é o Pacífico
Entrando depois pelas águas do Atlântico
E nesse passeio de rumo oceânico
Eu quero nos mares viver e sonhar
Bonitas sereias desejo pescar
Trazê-las na mão pra Raimundo Rolim
Pra mim e pra ele, pra ele e pra mim
Cantando galope na beira do mar.
Limeira:
Eu sou Zé Limeira, caboclo do mato
Capando carneiro no cerco do bode
Não gosto de feme que vai no pagode
O gato fareja no rastro do rato
Carcaça de besta, suvaco de pato
Jumento, raposa, cancão e preá
Sertão, Pernambuco, Sergipe e Pará
Pará, Pernambuco, Sergipe e Sertão
Dom Pedro Segundo de sela e gibão
Cantando galope na beira do mar.