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O pensamento yanomami

3 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Cláudia Andujar, publicada no livro "Yanomami"

fotografia de Cláudia Andujar, publicada no livro “Yanomami”

A queda do céu finalmente ganha tradução para o português. Publicado originalmente em francês em 2010, na prestigiosa coleção Terre Humaine, o volume traz o relato profundamente político e espiritual do grande xamã e porta-voz dos Yanomami, Davi Kopenawa, registrado pelo etnólogo-escritor Bruce Albert após trinta anos de convivência. O livro chega ao Brasil pela Companhia das Letras, traduzido por Beatriz Perrone-Moisés e conta com prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. É uma obra de impacto na história da etnografia, um diálogo rico e único entre dois universos culturais.

Albert registrou as meditações do xamã a respeito do contato predador com o homem branco, ameaça constante para seu povo desde os anos 1960. Trata-se de um relato extraordinário, confluência de testemunho autobiográfico, manifesto xamânico e libelo contra a destruição da floresta Amazônica. O discurso de Kopenawa introduz os sistemas cosmopolíticos e intelectuais dos yanomami para os brancos. 

Em entrevista concedida ao jornal O Globo, Albert conta: “Davi sabia que eu falava yanomami e queria explicar aos brancos a história e a tradição do seu povo para não serem exterminados pela cobiça do ouro”. O etnólogo apontou a interessante relação que desenvolveu ao escrever as opiniões, memórias e análises histórico-sociológicas do pajé, pois, na infância, Davi “teve contato na sua infância com missionários evangélicos cuja referência constante era a Bíblia. Desde cedo ficou atento ao poder da escrita no mundo dos brancos. Sabia, portanto, que para adquirir existência para os brancos a história e o pensamento yanomami deviam ser escritos na forma de um (grande) livro. De minha parte, escrever este livro a partir dos depoimentos do Davi foi uma tentativa de inventar uma nova forma de escrita etnográfica para resolver meu crescente mal-estar em manter estanques interesses acadêmicos e ação política”. Na mesma entrevista, Albert comentou sobre as interessantes nuances que surgem das diferentes relações entre a escrita, o pensamento e a cultura: “A escrita era vista para os antigos yanomami, como todos os bens dos brancos, como algo que podia ser usado como elemento de feitiçaria para deslanchar epidemias. Quando ficou mais familiar, passou a ser assimilada a um tipo de pintura corporal e o papel a uma forma de pele. Tal associação está inconscientemente embutida na língua yanomami. Mas isto não quer dizer que o livro é visto por Davi como um corpo. No livro Davi faz uma comparação entre o saber limitado atingido pela escrita dos brancos e o saber xamânico mais abrangente obtido pela visão propiciada pelos alucinógenos (a yãkoana). Ele considera que a escrita jamais poderá conter a multiplicidade infinita das palavras dos espíritos xamânicos (os xapiri). Portanto, escrever estas palavras é para ele um tipo de bricolagem comunicacional na falta de outra opção. É o único meio de dar aos brancos uma (pequena) ideia do que é o pensamento xamânico yanomami. Para preservar o sabor e a densidade de suas ideias, decidi traduzir as palavras de Davi muito perto de seu estilo em Yanomami, que é o estilo falado de um xamã, portanto de um intelectual. Tentei evitar uma tradução demasiadamente literal para não cair no estereotipo colonial da ‘fala de Índio’. Tentei, também, evitar o estilo acadêmico muitas vezes um tanto pomposo em nossa sociedade. Busquei ainda restituir ao mesmo tempo a precisão dos conceitos yanomami e sua qualidade poética”.

O livro narra a vocação de xamã desde a primeira infância, fruto de um saber cosmológico adquirido graças ao uso de potentes alucinógenos; o relato do avanço dos brancos pela floresta e das epidemias que trouxeram, junto com violência e destruição. Bruce Albert ainda descreve a luta de Kopenawa Yanomami para denunciar a destruição de seu povo.

A narrativa é repleta de visões xamânicas e meditações etnográficas sobre os brancos – que os Yanomami, com precisão sociológica, chamam de “povo da mercadoria”.

Em outra entrevista, esta, realizada por Bruce Albert a Davi Kopenawa e divulgada pelo Instituto Socioambiental [ISA], o pajé, questionado sobre as epidemias que assolam o seu território devido à invasão garimpeira, deu uma resposta que, pela coerência e concisão, mas sobretudo pela relevância etnográfica e política, aqui reproduzimos integralmente:

“Vou te dizer o que nós pensamos. Nós chamamos estas epidemias de xawara. A xawara que mata os Yanomami. É assim que nós chamamos epidemia. Agora sabemos da origem da xawara. No começo, nós pensávamos que ela se propagava sozinha, sem causa. Agora ela está crescendo muito e se alastrando em toda parte. O que chamamos de xawara, há muito tempo nossos antepassados mantinham isto escondido.Omamë [o criador da humanidade yanomami e de suas regras culturais]
mantinha a xawara escondida. Ele a mantinha escondida e não queria que os Yanomami mexessem com isto. Ele dizia: “não ! não toquem nisso!” Por isso ele a escondeu nas profundezas da terra. Ele dizia também: “Se isso fica na superfície da terra, todos Yanomami vão começar a morrer à toa!”

Tendo falado isso, ele a enterrou bem profundo. Mas hoje os nabëbë, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados por um desejo frenético de tirar esta xawara do fundo da terra onde Omamë a tinha guardado. Xawara é também o nome do que chamamos booshikë, a substância do metal, que vocês chamam “minério”. Disso temos medo. A xawara do minério é inimiga dos Yanomami, de vocês também. Ela quer nos matar. Assim, se você começa a ficar doente, depois ela mata você. Por causa disso, nós, Yanomami, estamos muitos inquietos. Quando o ouro fica no frio das profundezas da terra, aí tudo está bem. Tudo está realmente bem. Ele não é perigoso. Quando os brancos tiram o ouro da terra, eles o queimam, mexem com ele em cima do fogo como se fosse farinha. Isto faz sair fumaça dele. Assim se cria a xawara, que é esta fumaça do ouro. Depois, esta xawara wakëxi, esta “epidemia-fumaça”, vai se alastrando na floresta, lá onde moram os Yanomami, mas também na terra dos brancos, em todo lugar. É por isso que estamos morrendo. Por causa desta fumaça. Ela se torna fumaça de sarampo. Ela se torna agressiva e quando isso acontece ela acaba com os Yanomami.

Quando os brancos guardam o ouro dentro de latas, ele também deixa escapar um tipo de fumaça.  É o que dizem os mais velhos, os verdadeiros anciãos que são grandes pajés. Quando os brancos secam o ouro dentro de latas com tampas bem fechadas e deixam estas latas expostas à quentura do sol, começa a sair uma fumaça, uma fumaça que não se vê e que se alastra e começa a matar os Yanomami. Ela faz também morrer os brancos, da mesma maneira. Não são só os Yanomami que morrem. Os brancos podem ser muito numerosos, eles acabarão morrendo todos também. É isto que os Yanomami falam entre eles.

Quando esta fumaça chega no peito do céu [para os Yanomami, o céu tem “costas”(onde moram os fantasmas, o trovão e diversas criaturas sobrenaturais) e um “peito”, que é a abóbada celeste vista pelos humanos], ele começa também a ficar muito doente, ele começa também a ser atingido pela xawara. A terra também fica doente. E mesmo os hekurabë, os espíritos auxiliares dos pajés [espíritos descritos como humanóides miniaturas e que são manipulados pelos pajés ( considerados seus “pais”) para curar, agredir, influir sobre fenômenos e entidades cosmológicas etc.], ficam muito doente. Mesmo Omamë está atingido. Deosimë (Deus) também. É por isso que estamos agora muito preocupados.
“Os pajés que já morreram vão querer se vingar, vão querer cortar o céu em pedaços para que ele desabe em cima da terra. Nós queremos contar tudo isso para os brancos, mas eles não escutam.”

Tem também a fumaça das fábricas. Vocês pensam que Deomisë pode afugentar esta xawara, mas ele não pode repelir está fumaça. Ele também vai ficar morrendo disso. Mesmo sendo um ser sobrenatural, ele vai ficar muito doente. Nós sabemos que as coisas andam assim, por isso estamos passando estas palavras para vocês. Mas os brancos não dão atenção. Eles não entendem isso e pensam simplesmente: “esta gente está mentindo”. Não há pajés entre os brancos, é por isso . Nós Yanomami temos pajés que inalam o pó de yakõana [pó tirado da resina da árvore Virola elongata, que tem propriedades alucinógenas], que é muito potente, e assim sabemos da xawara e ficamos muito inquietos. Não queremos morrer. Nós queremos ficar numerosos. Mas agora que os garimpeiros nos viram e se aproximaram de nós, apesar do fato de que Omamë tem guardado o ouro embaixo da terra, eles estão retirando grandes quantidades dele, cavando o chão da floresta. Por isso, agora, xawara cresceu muito. Ela está muito alta no céu, alastrou-se muito longe. Não são só os Yanomami que morrem. Todos vamos morrer juntos. Quando a fumaça encher o peito do céu, ele vai ficar também morrendo, como um Yanomami. Por isso, quando ficar doente, o trovão vai-se fazer ouvir sem parar. O trovão vai ficar doente também e vai gritar de raiva, sem parar, sob o efeito do calor. Assim, o céu vai acabar rachando. Os pajés yanomami que morreram já são muitos, e vão querer se vingar… Quando os pajés morrem, os seus hekurabë, seus espíritos auxiliares, ficam muitos zangados. Eles vêem que os brancos fazem morrer os pajés, seus “pais”. Os hekurabë vão querer se vingar, vão querer cortar o céu em pedaços para que ele desabe em cima da terra; também vão fazer cair o sol, e, quando o sol cair, tudo vai escurecer. Quando as estrelas e a lua também caírem, o céu vai fica escuro. Nós queremos contar tudo isso para os brancos, mas eles não escutam. Eles são outra gente, e não entendem. Eu acho que eles não querem prestar atenção. Eles pensam: “esta gente está simplesmente mentindo”. É assim que eles pensam. Mas nós não mentimos Eles não sabem destas coisas. É por isso que eles pensam assim. Os brancos parecem aumentar muito, mas, mais tarde, os Yanomami acabarão tendo a sua vingança. Isso porque os hekurabë estão aqui conosco e o céu também está, bem como o espírito de Omamë, que nos diz “não! Não ficam desesperados! Mais tarde nós vamos Ter nossa vingança!
Os garimpeiros, o governo, estes brancos que não gostam de nós… eles são outra gente, por isso eles querem nos fazer morrer. Mas nós teremos nossa vingança, eles também acabarão morrendo”… É assim também que pensam os hekurabë: “sim! teremos nossa vingança!”. Nós, os pajés, também trabalhamos para vocês, os brancos. Por isso, quando os pajés todos estiverem mortos, vocês não conseguirão livrar-se dos perigos que eles sabem repelir.

Vocês ficarão sozinhos na terra e acabarão morrendo também. Quando o céu ficar realmente muito doente, não se terá mais pajés para segurá-lo com os seus hekurabë. Os brancos não sabem segurar o céu no seu lugar. Eles só ouvem a voz dos pajés, mas pensam, sem saber das coisas: “eles estão falando à toa, é só mentira!”. Quando os pajés ainda estão vivos, o céu pode estar muito doente, mas eles vão conseguir impedir que ele caia. Sim, ainda que ele queira cair, que ele comece a querer desabar em direção à terra, os pajés seguram ele no lugar. Isso porque nós, os Yanomami, nós ainda estamos existindo. Quando não houver mais Yanomami, aí o céu vai cair de vez. São os hekurabë dos pajés que seguram o céu. Ele pode começar a rachar com muito barulho, mas eles conseguem consertá-lo e o fazem ficar silencioso de novo. Quando nós, os Yanomami, morrermos todos, os hekurabë cortarão os espíritos da noite, que cairão. O sol também acabará assim. Nos primeiros tempos, o céu já caiu, quando ele estava ainda frágil [antes desta queda do céu, morava na terra uma humanidade Yanomami que foi precipitada no mundo subterrâneo, onde se transformou num povo de monstros canibais]. Agora, ele está solidificado, mas, apesar disso, os hekurabë vão querer quebrá-lo. Eles também vão querer rasgar a terra. Um pedaço rasgar-se-á por aqui, outro por aí, outro ainda numa outra direção. Tudo isso também cairá, todos cairão do outro lado da terra e todos morrerão juntos. É assim que serão as coisas, por isso estamos ficando muito inquietos. Mas os grandes pajés, os mais velhos, dizem-nos: “não! Não fiquem inquietos! Mais tarde, teremos nossa vingança! Da mesma maneira que eles estão-nos fazendo morrer, nós também provocaremos sua morte!” É assim que os pajés falam.

Os hekurabë são muito valentes. Quando seus “pais”, os velhos pajés, morrem, eles ficam com uma raiva-de-luto muito grande. Eles querem muito vingar-se. Aí, eles começam a cortar o peito do céu. Mas outroshekurabë, que pertencem aos pajés que ficaram vivos, seguram-nos, dizendo: “Não! Não façam isso! Ainda há outros pajés vivos! Os pajés mais jovens estão ficando no lugar dos mais velhos!”… Falando assim, eles conseguem impedir a queda do céu. “Os espíritos da xawara, os xawararibë, estão aumentando muito… Eles são tão numerosos quanto os garimpeiros, tão numerosos quanto os brancos. Por isso não conseguimos juntar-nos o suficiente para lutar”.

 

A  publicação da tradução em português de A queda do céu é um verdadeiro acontecimento, antropológico, filosófico, político e cultural.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para leitura.

 

queda do céu

 

 

A QUEDA DO CÉU

Autores: Davi Kopenawa e Bruce Albert
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 48,93 (768 págs.)

 

 

 

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