cinema

Obra testamento

4 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

[…] A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”. – Glauber Rocha, “Eztetyka da fome”.

cena do filme “Terra em transe”

Da coleção Glauberiana, preparada pela CosacNaify há exata década, só resta disponível este fascinante Revolução do cinema novo. A proposta da coleção foi reeditar toda a obra crítica e literária de Glauber Rocha (1939-1981). Com coordenação editorial de Augusto Massi e Ismail Xavier, foram publicados três volumes: Revisão crítica do cinema brasileiro, Revolução do cinema novo, O século do cinema.

Revolução do cinema novo, escrito pelo diretor após a finalização de A idade da Terra, seu último longa-metragem, em 1980, é considerado uma obra testamento. O livro é dividido em duas partes distintas. A primeira reúne artigos publicados ao longo dos anos anteriores e retoma debates e entrevistas. Nela, estão incluídos textos fundamentais como o célebre artigo “Eztetyka da fome”, síntese sobre o cinema novo aos europeus, apresentado na Retrospectiva do Cinema Latino-Americano, em Gênova, em 1965 e “Eztetyka do Sonho”, de 1971. A segunda parte apresenta reflexões e notas biográficas escritas em 1980, uma “memória afetiva” que se refere diretamente a personagens da vida cultural da época. Os textos passaram por rigorosa revisão e incluiu-se um índice onomástico. Com prefácio do autor inédito em livro e artigo de Cacá Diegues escrito à época do cinema novo, a edição é totalmente ilustrada.

De acordo com o crítico Inácio Araújo, “Revolução do cinema novo não é, afinal, o livro de um santo, mas de um homem. Tem a marca de um dos maiores artistas brasileiros do século XX e também a sua impureza. Quase uma autobiografia de Glauber Rocha, é um livro-chave”. Segundo o crítico, o cinema de Glauber “permaneceu fiel à estética que ele tanto defendia e que ainda deveria ser motivo de estudo”.

Nas palavras de Ivana Bentes, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, em artigo publicado na revista Cult: “Que tipo de forças (políticas, estéticas) podem ser desencadeadas pela fome, pela violência e pela miséria latino-americanas? Poucos artistas contemporâneos colocaram essa questão (hoje finalmente tornada uma questão de governo) de forma tão complexa e original quanto o cineasta Glauber Rocha. Numa torção radical, e abandonando um discurso político-sociológico corrente na década de 60 e 70, Glauber dá um sentido afirmativo e transformador para os fenômenos ligados à falta e à miséria latinas, buscando reverter “forças auto-destrutivas máximas” num impulso criador, mítico e onírico”. Como aponta Bentes – organizadora do livro Cartas ao mundo: Glauber Rocha –, tanto a fome como o sonho são temas privilegiados no cinema e no pensamento de Glauber, “passagem de uma abordagem político-racional da miséria para uma experiência onírica e mítica que aparece em dois textos cruciais de Glauber, textos-manifestos que serviram de base ético-estética para todo seu cinema: “Eztetyka da fome” (1965) e “Eztetyka do sonho” (1971) [conforme a grafia particular do cineasta] – textos complementares, onde Glauber vai da fome ao delírio do faminto, fazendo da brutalidade e do onírico a base de um pensamento desestruturante”. A professora conclui: “Se historicamente ou materialmente a revolução desejada por toda uma geração não aconteceu, Glauber monta seu apocalipse estético-revolucionário-cinematográfico e projeta no Brasil o seu “Parayzo Material Dezenraizado” construção cinematográfica e messiânica de uma democracia mística brasileira instaurada pelo cinema e pela arte em sintonia com o econômico, o cultural e o industrial, acreditando que “um conjunto de filmes em evolução dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência”.

A respeito do texto “Eztetyka da fome”, Ismail Xavier analisou: “Da fome. A estética. A preposição da, ao contrário da preposição sobre, marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto do qual se fala. Ela se instala na própria forma do dizer, na própria textura das obras […] passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz de evitar a simples constatação (somos subdesenvolvidos) ou o mascaramento promovido pela imitação do modelo imposto (que, ao avesso, diz de novo somos subdesenvolvidos)”.

A CosacNaify disponibiliza visualização do livro.

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Trecho de Estética da Fome – ou Estétyka da Fome, conforme grafia de Glauber Rocha:

Dispensando a introdução afirmativa que se tem transformado na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista. A América Latina, inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e, além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

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REVOLUÇÃO DO CINEMA NOVO

Autor: Glauber Rocha
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 52,50 (568 págs.)

 

 

 

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