Os poemas de Ana Luisa Amaral reunidos sob o título Vozes versam, também, sobre os silêncios. Em sua lírica, estes são opostos cuja recíproca implicação une-os na própria plenitude daquilo que de mais verdadeiramente paradoxal há nesta união: sua poesia alcança o que há de mais íntimo na natureza humana em sua existência como ser em um mundo concreto e real.
Fala com Ícaro, mas pressente o chão quando, na verdade, dialoga com Brueghel; seu poema teria pregas servindo como vestido ao corpo da prosódia; “escrevia / de beijos que não tinha / e cebolas em quase perfeição”; encontra o avesso das palavras.
Uma das maiores poetas contemporâneas de Portugal, Ana Luísa Amaral já recebeu alguns prêmios importantes, dentro e fora do seu país, como o Prêmio de Poesia António Gedeão, recebido em 2011 pelo livro Vozes,
Para ela, como disse em entrevista à Revista Cult, as palavras são “o motor da memória” e nisso residiria a força da poesia. “Transformada em exercício da palavra, em recusa do silêncio, a solidariedade pode ser não contradição, mas contradicção, uma representação nova dos corpos que as ideologias dominantes do dinheiro e da ganância pretendem tornar rasos”. Questionada sobre a função da poesia, nos atuais “tempos difíceis”, ela respondeu: “Eu acho que a poesia não tem função nenhuma, a poesia em si, mas ela pode ser utilizada. Uma coisa é escrevê-la, e outra é recebê-la. Acho que são aspectos diferentes. Ao escrevê-la, no meu caso, ela não tem uma função, não serve para nada, a não ser para mim. Agora, se eu pensar em quem a lê, em que a refaz, e se torna refém dela, a função existirá deste outro lado, o do leitor. Aí, sim, ela tem uma função imensa, é quando ela se atualiza do outro lado, como no caso do verso do Sá de Miranda. Ela pode ser uma forma de gerar e criar intensificação, porque é uma linguagem de intensidades. Ela pode ser uma forma de intensificar também os afetos, a solidariedade. E isso acontece quando a poesia é posta em ação, em leituras públicas, por exemplo, em pequenos grupos. Nunca em Portugal – e estamos passando por uma grande crise – houve tantos grupos pequenos a ler poesia, e quase todos os dias. É possível falar sobre a injustiça e as desigualdades de uma maneira profundamente poética, sem ser engajado”.
Sobre o livro Vozes, é necessário citar um trecho da bela análise de Yara Frateschi Vieira: “Dois poemas circunscrevem o território poético em que transitam os textos deste último volume de Ana Luísa Amaral: o que lhe serve de abertura intitula-se “Silêncios” e o que o fecha, “Vozes”. Assim, no plural, silêncios e vozes remetem-nos, em primeira instância, a experiências concretas na relação miúda e cotidiana com os seres e objetos, lugares e momentos, emoções e afetos, que, não obstante, nos atingem de forma pontual e única / o fio mais afiado que punhal. Mas, por outro lado, defrontamo-nos também com o silêncio e a voz, demarcadores de uma linguagem que se reconhece, antes de mais nada, como o lugar da falha, da falta, da incoincidência, e nele aceita instalar-se, exibindo-o, ao mesmo tempo que procura frestas por onde escapar. A inscrição minuciosa da busca desses caminhos, com os seus desvios, correções de percurso e becos sem saída, é não só um tema preferido, mas um procedimento constitutivo da poesia de Ana Luísa Amaral”. De acordo com a crítica, sua poesia assume, “para usar uma palavra que lhe é cara, a imperfeição como dado ineludível do existir e do dizer”.
Este é o primeiro livro de poemas de Ana Luisa Amaral publicado no Brasil. A edição foi realizada pela editora Iluminuras e conta com posfácio do crítico literário Vinicius Dantas. Este livro é o décimo quarto publicado por ela em sua trajetória poética. Em Portugal, Vozes foi publicado pela editora Dom Quixote, em 2011.
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A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA
Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas –
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Autor: Ana Luisa Amaral
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 38,00 (120 págs.)