Isidore Lucien Ducasse, sob o pesudônimo Conde de Lautréamont, tornou-se conhecido como um dos poetas mais instigantes do século XIX. Nascido em Montevidéu, “nas costas da América, na foz do La Plata”, como diz o Canto I da sua obra-prima Os Cantos de Maldoror, ao final da infância mudou-se com o pai para a França. Ali, desenvolveu uma poesia que, por André Breton, foi considerada um dos precursores do surrealismo, e que fascinou autores tão diversos como Malraux, Gide, Neruda e Ungaretti. Lautréamont, porém, morreu aos 24 anos, em 1870, desconhecido. Somente dezesste anos depois de sua morte começou a tornar-se o mito que é hoje em dia, graças a sua extraordinária ousadia e à criatividade completamente livre de seu texto. O filósofo Gaston Bachelard foi um dos primeiros a formular em um livro seu comentário à obra de Lautréamont, em 1939. Octavio Paz, por exemplo, com a linguagem de um Maldoror, disse: “A história da poesia moderna é a de um descomedimento. […] O astro negro de Lautréamont preside o destino de nossos maiores poetas”.
Os cantos de Lautréamont destilam uma escrita do avesso, em que cada termo contém seu oposto e cada coisa implica seu contrário, aquilo que não é: repleta de paradoxos, satírica e paródica, essa escrita abissal tem como aliada a imaginação desenfreada e transbordante. Toda a aobra, desde sua própria concepção, até o estranho vocabulário e as figuras exageradas de retórica, obedece inteiramente à lógica do delírio e da negação. Constituído de sessenta estrofes, Os Cantos de Maldoror é considerada obra seminal no campo da literatura fantástica, ainda que, até hoje, escape a qualquer classificação rigorosa.
Segundo Maurice Blanchot, a literatura é a possibilidade de suspensão momentânea da angústia do homem, pois possibilidade de escutar o murmúrio inumano da existência e de criar realidades alheias ao mundo, porém plenamente reais. Em autores como Lautréamont e Sade, porém, a escrita é conduzida por uma lógica neutra e inumana, como analisa o professor Karl Erik Schøllhammer, “nem subjetiva nem objetiva, cuja precisão e clareza não nos leva de volta ao mundo referencial senão a uma outra opacidade, a uma outra noite não iluminável pelo espírito”. Blanchot encontra na literatura de Lautréamont um exemplo, esse momento que precede a própria literatura “e em que a escrita se revela uma força impessoal, uma consciência sem sujeito, uma existência sem ser — um há (il y a; es gibt) — na exterioridade radical da linguagem”.
A editora Iluminuras já havia publicado A obra completa de Lautréamont, traduzida e comentada pelo poeta Claudio Willer, mas infelizmente esgotado. Willer traduziu e preparou esta edição de Os Cantos de Maldoror, incluindo comentários, notas e um ótimo prefácio interpretativo.
_____________
Hoje, sob a impressão dos ferimentos que meu corpo recebeu em diferentes circunstâncias, seja pela fatalidade do meu nascimento, seja por minha própria culpa; desalentado pelas conseqüências da minha queda moral (algumas dentre elas aconteceram; quem poderá prever as outras?); espectador impassível das monstruosidades adquiridas ou naturais, que decoram as aponevroses e o intelecto de quem vos fala, lanço um prolongado olhar de satisfação à dualidade que me compõe… e me acho belo! Belo como o vício de conformação congênito dos órgãos sexuais do homem, que consiste na brevidade relativa do canal da uretra e na divisão ou ausência da parede inferior, de modo que o canal se abra a uma distância variável da glande e por baixo do pênis; ou, ainda, como a verruga carnuda, de forma cônica, sulcada por rugas transversais bem profundas, que se ergue na base do bico superior do peru; ou melhor, como a seguinte verdade: “O sistema de gamas, modos e encadeamentos harmônicos não repousa em leis naturais invariáveis, mas é, ao contrário, conseqüência de princípios estéticos que variam com o desenvolvimento progressivo da humanidade e que continuarão variando!”; e, principalmente, como uma corveta encouraçada com torreões! Sim, sustento a exatidão da minha afirmação. Não tenho ilusões presunçosas, orgulho-me disso, e nada ganharia em mentir; de modo que, quanto ao que eu disse, não deveis vacilar em acreditar-me. Pois, como iria eu inspirar horror a mim mesmo, diante dos testemunhos elogiosos que partem da minha consciência?
_____________
Autor: Conde de Lautréamont
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 39,20 (384 págs.)