O trabalho ensaístico de José Paulo Paes é tão preciso quanto sua poesia. Organizada pela escritora Vilma Arêas, a reunião de alguns dos ensaios de Paes, neste volume, intitulado Armazém literário, trouxe aos leitores a possibilidade de encontrar textos tocantes cujos livros de publicação original há muito estão esgotados no mercado brasileiro. Com prosa fluente e elegante, Paes lida com assuntos graves a partir de autores como Machado de Assis, William Blake ou Simone Weil, ou então, utilizando toda a liberdade da forma ensaística, reflete sobre o ofício de poeta e sobre sua própria “linhagem” na poesia brasileira; no ensaio “Para uma pedagogia da metáfora”, por exemplo, expõe sua concepção de poesia como metáfora do mundo, com “seu poder de revelar o universal no particular”. Há também ensaios sobre a arte da tradução de poesia, que Paes praticou até o fim da vida – verteu para o português autores de várias línguas, como o americano William Carlos Williams, os gregos Konstantínos Kaváfis e Giorgos Seféris, o francês Paul Éluard, o alemão Rainer Maria Rilke.
Manuel da Costa Pinto, em artigo escrito à Folha de São Paulo, analisa: “Textos de crítica literária escritos com alma de ensaísta. Essa é uma definição possível para a antologia Armazém Literário”. Segundo o colunista da Folha, Paes consegue unir a erudição das análises à fluidez da forma ensaística, assegurando-lhe seu caráter original de conversação com o leitor, tal como Montaigne a concebeu: “Mesmo nos textos de argumentação mais cerrada, porém, ele se guia pelo prazer de gazetear, deixa-se levar pela livre associação de idéias e consegue, assim, vazar sua enorme erudição por meio da “causerie”, do bate-papo -enfim, da arte da conversação. Nessa escrita lábil, digna da melhor tradição ensaística, o assunto muitas vezes é deflagrado por reminiscências pessoais -como em “Frankenstein e o Tigre”, no qual uma noite de insônia em que rabiscava a tradução do poema “The Tyger”, de William Blake, leva Paes a reflexões sobre o romance de Mary Shelley”. Para Costa Pinto, “o volume inclui um texto igualmente fundamental: “O Pobre-diabo no Romance Brasileiro”. Analisando os romances “O Coruja”, de Aluísio Azevedo, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto, “Os Ratos”, de Dionélio Machado, e “Angústia”, de Graciliano Ramos, José Paulo Paes identifica uma linhagem de anti-heróis nacionais cujas existências fracassadas (nem vítimas, nem carrascos) são a representação ficcional do “frustrado papel de vanguarda que a pequena-burguesia teve em nossa dinâmica social”. O texto é emblemático da dicção de José Paulo Paes. Associa acuidade analítica, repertório bibliográfico e ironias sobre a condição do intelectual brasileiro (esse pobre-diabo letrado e sem leitor) a um estilo que corresponde exatamente à fórmula empregada por Alexandre Eulalio para definir o ensaio: “prosa literária de não-ficção”.
De acordo com a análise do crítico literário Marcos Pasche, em artigo publicado no Jornal Rascunho, o “aspecto mais instigante da leitura do Armazém literário é, suponho, termos a oportunidade de conhecer reflexões (especialmente acerca da literatura, mas não somente dela) feitas por alguém que não pertenceu institucionalmente à academia, cada vez mais legitimada por alguns setores intelectuais como templo único do conhecimento no Brasil. Percorrendo suas páginas, verdadeiras tradutoras de um pensar amplo, buscando ao máximo interpretar os fenômenos artísticos sem empobrecedoras restrições, encontraremos estudos sobre os mais variados assuntos […]. Sobre isso, no intróito, Vilma Arêas diz acertadamente que o autor habita um entrelugar na crítica brasileira, visto ter passado por algumas universidades (ele ministrou um curso de tradução na Unicamp e lecionou brevemente na pós-graduação da USP, da qual recebeu o título de Doutor honoris causa) sem a elas pertencer efetivamente, livrando assim seu pensamento do academicismo, no sentido negativo do termo”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para leitura.
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Trecho:
Um aprendiz demorto
Ocaso?
Do Memorial de Aires se pode dizer, sem temor de impropriedade, aquilo que seu pretenso editor disse um dia dos olhos das ciganas: é livro oblíquo e dissimulado. A dissimulação já começa no título, que parece prometer uma espécie de autobiografia do conselheiro Aires, no estilo da de Brás Cubas ou de Bentinho, vale dizer: a autobiografia de alguém que Esaú e Jacó nos antecipara como um fino observador da comédia humana, homem viajado e vivido, com muito de si para contar, se quisesse. No entanto, o que o Memorial nos traz, em primeiro plano, é a história algo dessaborida do casal Aguiar e de seus filhos postiços, narrada por interposta pessoa numa linguagem que, comparada à das Memórias póstumas, do Quincas Borba ou de Dom Casmurro, só se pode chamar de descolorida,1 de vez que o paralelo comesses livros só faz realçar-lhe a palidez de tintas.
Nos romances da sua chamada “segunda fase”,Machado desenvolveu uma arte narrativa muito característica. Arte de quem, leitor constante de Sterne e De Maistre, compraz-se no paradoxo – tanto ao nível de artifício retórico quanto de visão do mundo –, dele se valendo para pôr habilmente em destaque os aspectos contraditórios da natureza humana. Daí a atração do romancista pelas personagens que, num ou noutro particular, escapem à normalidade, seja por excêntricas ou marginais em relação à norma ético-social, seja por declaradamente psicóticas.Que haverá, porém, no Memorial que mereça o nome de excêntrico? Seus protagonistas são gente comum, cujos conflitos envolvem sentimentos e valores morais que nada têm de turvos ou de aberrantes, confinando-se antes, prudentemente, aos limites do convencional. Diante disso, poderá talvez passar pela cabeça do leitor mais apressado, sem paciência de ler nas entrelinhas ou gosto de demorar-se nas obliqüidades machadianas, a suspeita de que o Memorial assinalaria o ocaso da carreira do romancista, seu inevitável momento de decadência.
A suspeita é infundada, mas cumpre, ao refutá-la, evitar o extremo de ver, nesse livro crepuscular, um ápice ou gran finale. O que a prudência aconselha é mostrar apenas que, malgrado as aparências, o Memorial não destoa dos romances anteriores do autor nem lhes desvia o curso. 2 Prolonga-lhes a diretriz básica,mas comum comedimento que chega à dissimulação.Tem algo de tour de force às avessas: em vez de aliciar o leitor com a mestria ostensiva de sua fatura, diverte-se em confundi-lo como descolorido de sua mestria oculta.
Descobrir e encobrir
A ocultação é, aliás, um pendor de espírito que calha à personalidade do autor do livro, cujos trinta e tantos anos de carreira diplomática deixaram-lhe na alma o “calo do ofício”.A despeito de sua aparente “falta de vocação”,que o teria levado ao exercício de uma diplomacia apenas “decorativa”,mais acomodada “às melodias de sala ou de gabinete” que à celebração de importantes “tra- tados de comércio” ou “alianças de guerra”, o conselheiro – conforme diz o Machado ortônimo desse seu dileto heterônimo – fora “diplomata excelente”, com aguçada “vocação de descobrir e encobrir”, “verbos parentes” em que se contém “toda a diplomacia”. Pois são precisamente esses dois verbos que presidem a estilística Do Memorial, onde o explícito só serve como indício do implícito e o encobrimento diplomático quase leva o leitor a esquecer o fato essencial de o livro ser mesmo, no fim das contas, um diário que,por indiretas vias, nos diz tanto acerca de quem o escreve como daqueles a quem descreve.
Desde Esaú e Jacó sabia-se que o conselheiro deixaria após a morte, como seu legado principal, sete cadernos manuscritos, em seis dos quais falava mais de si que dos outros; no sétimo, por ele mesmo chamado Último, fazia exatamente o contrário.Desses sete cadernos, houve por bem M. de A. (iniciais com que Machado assina, como uma espécie de editor, a “Advertência” do Memorial, e que curiosamente são as mesmas do título do livro) só imprimir o Último, aquele em que o conselheiro menos falava de si.A justificativa era a de ser esta parte a única capaz de,”decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões”, dar “uma narração seguida”, virtude que, para um romancista de profissão, certamente sobrelevaria quaisquer outras. Entretanto, a intervenção do editor parece ter-se limitado aos cortes; em nada mais interviria ele no manuscrito do conselheiro, conservando-lhe inclusive a forma de diário, de anotações soltas encimadas por datas e ordenadas cronologicamente.
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Autor: José Paulo Paes
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,20 (376 págs.)