Ao desembarcar no Brasil, como imigrante europeu após a Segunda Guerra, o médico, escritor, tradutor e pensador húngaro Sándor Lénárd fixou-se na cidade de Dona Emma, em Santa Catarina, e naquele vale viveu, de 1952 até 1972. O livro O vale do fim do mundo traz uma visão panorâmica da sociedade, dos costumes, da política e do cotidiano dessa pequena cidade durante os anos 1950 e 1960. São histórias locais, ouvidas pelo médico e por ele vividas. “O colono de Santa Catarina espera que seus feitos heroicos sejam transformados em épico, e provavelmente espera em vão”, escreveu Sándor Lénárd. É representativa sobretudo sua visão como estrangeiro, que lhe permite uma observação geral sobre o lugar desconhecido e seus diferentes hábitos. Além de anedotas, também crendices populares e costumes locais são descritos e analisados ao longo do livro, dando à narrativa um interesse sociológico e histórico, além do literário narrativo. Um livro de memórias coletivas, narrado em primeira pessoa. O vale do fim do mundo foi publicado por “Alexander”, como o conheciam, em 1967 e, somente agora, traduzido para o português por Paulo Schiller, também responsável pelo texto de orelha desta edição da Cosacnaify.
“A humanidade decidiu que conhece apenas o que está escrito – e sobre essas vidas nada passou ao papel”, escreve Lénárd, referindo-se ao desconhecimento acerca da região. Pois os colonos nunca se preocuparam em deixar como legados registros de sua cultura, mas em sobreviver, manter sua rotina de trabalho nas roças, preservar a natureza local – entranhada à sua história – e possibilitar a manutenção de uma vida rural harmônica. “Na cidade ele poderia ter uma escrivaninha – mas quem escreveria a história do avô? Cada um conta a própria história”, escreve Lénárd, enfatizando ao longo do livro a ignorância do colono em relação ao próprio legado histórico. Coube a ele, estrangeiro, registrá-lo. Segundo ele, os colonos não falam, silenciam: “Silenciam porque durante a aragem é difícil conversar. Silenciam porque já disseram tudo, porque com seu parco vocabulário convém economizar. E quando silenciam, as feridas da alma cicatrizam”.
Lénárd, um dos grandes nomes do humanismo europeu, conseguiu aliar uma visão mordaz a uma profunda sensibilidade humana para traçar este retrato. Segundo Paulo Schiller, responsável pela indicação editorial de O vale do fim do mundo, em entrevista à revista Cult, a importância maior de Sándor Lénárd na literatura húngara do século XX está justamente “no fato de que é um dos últimos representantes de certo humanismo que produziu intelectuais politicamente engajados, de enorme erudição, conhecedores de muitas línguas, de artes plásticas, de música, que exerceram múltiplas atividades. Desde, no caso dele, um texto sobre a origem do bife à milanesa, a um livro sobre o órgão, passando pela tradução do Ursinho Puff para o latim”.
O VALE DO FIM DO MUNDO
Autor: Sándor Lénárd
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 27,93 (224 págs.)