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A difícil democracia

14 novembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”.

Giorgio de Chirico

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos foi o Homenageado Internacional da III Bienal do Livro e da Leitura, em Brasília, que ocorreu entre 21 e 30 de outubro de 2016 – evento que teve programação cultural tão rica quanto mal divulgada e que por isso infelizmente passou incólume à maior parte da população brasiliense. O renomado sociólogo recebeu título de Cidadão Honorário de Brasília e, em sua estadia no distrito federal, com fôlego invejável, proferiu duas palestras na Bienal, uma na UnB e visitou uma escola ocupada, onde conversou com os secundaristas.

“Não questiono que haja um futuro para as esquerdas, mas seu futuro não vai ser uma continuação linear de seu passado”, diz em seu novo livro, A difícil democracia – Reinventar as esquerdas, que tem sua primeira publicação mundial no Brasil pela Boitempo Editorial.

Trata-se de uma profunda reflexão sobre a necessidade urgente da esquerda de reinventar-se. Reinvenção que perpassa uma reflexão sobre os impasses da experiência democrática – cujos sintomas vem sido sentidos atualmente de maneira mais aguda: um momento absolutamente crítico, dominado, como nunca, por uma única concepção de democracia, de tão baixa intensidade que facilmente se confunde com a antidemocracia, que tem como contrapartida o que o sociólogo chama de “fascismo social”.

Diz o autor: “até quando o fascismo se mantém como regime social e não passa a fascismo político é uma questão em aberto”. A experiência social do presente, segundo Boaventura, é profundamente marcada pelo desencanto generalizado e pela frustração das expectativas de renovação democrática que irromperam por todo o globo entre 2011 e 2013, em movimentos como o Occupy nos EUA, os indignados no sul da Europa, a Primavera Árabe na Tunísia e no Egito e as manifestações de junho de 2013 no Brasil. O sociólogo passa a limpo o percurso da democracia ao longo do século XX, articulando-o em torno dos debates sobre as diversas concepções e facetas do desafio democrático. Seu tecido histórico é feito com legado de experiências concretas como a Revolução dos Cravos, a Revolução Cubana, a Venezuela de Hugo Chávez, a “Revolução Cidadã” de Rafael Correa no Equador, o Podemos na Espanha, o Syriza na Grécia, a situação atual da União Europeia, a Ucrânia e a Rússia, entre outros. Com viés crítico, repassa toda a experiência democrática e os caminhos da esquerda no século passado.

Para Boaventura, ainda está em aberto se a democracia continuará a ocupar a mesma posição no campo político do século XXI. “A democracia participativa perdeu muito de seu impulso contra-hegemônico inicial, em muitas situações foi instrumentalizada, cooptada, deixou-se burocratizar, não se renovou em termos sociais nem em termos geracionais. No pior dos casos, conseguiu ter todos os defeitos da democracia representativa e nenhuma de suas virtudes”.

Segundo Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da UnB, em artigo publicado no blog da Boitempo: “Não são apenas as instituições, as normas e os recursos políticos que estão permanentemente em disputa nas democracias. No debate teórico e nas análises que se acumulam ao longo do tempo, a própria definição da democracia está no centro das lutas. Mesmo em sua forma mais restrita, estamos tratando de um fenômeno raro na história.  Mas é a democracia restrita, desidratada, que se tornou referência no século XX, como peça ideológica na Guerra Fria, recauchutada nas disputas pelo controle de países do Oriente Médio mais recentemente. Corresponde a procedimentos que garantiriam a livre escolha, por eleitoras e eleitores, de pessoas e partidos que as governarão legitimamente, em geral conectada à ideia de um sistema político eleitoral que expresse diferentes posições e interesses existentes na sociedade, ao livre acesso a informações e a garantias iguais de liberdade para os indivíduos”. Trata-se de uma disputa entre os regimes democráticos, enquanto campos de luta.

Boaventura, analisa Biroli, procura no livro estabelecer “os padrões de reprodução do capital no contexto atual de crise como lógica prevalecente; no campo das esquerdas e das lutas pela democractização, por outro lado, a dignidade humana e a partilha do poder são as balizas. É com elas que o autor opera para pensar as esquerdas, seus limites, seus futuros possíveis. Seu olhar é, sobretudo, para a semiperiferia do mundo, a que correspondem em sua análise o sul da Europa, em especial Portugal, Espanha e Grécia, e a América Latina, com especial atenção para os países que passaram por experimentos democráticos e pela chegada ao poder de partidos de esquerda ou de centro-esquerda, como Brasil, Bolívia, Venezuela e Equador. As noções de democracia de alta e de baixa intensidade são orientadoras aqui. Pode ser um problema, em alguns momentos, mas é um mérito em outros que a democracia seja tratada como uma questão de graus e não de um conjunto estrito de peças bem-encaixadas”. De acordo com a professora, ao longo do livro “há uma atenção ampliada ao fato de que a dominação não atende a uma lógica exclusiva. É capitalista, colonialista e patriarcal, simultaneamente. É feita, portanto, de sistemas de opressão e de exploração que têm especificidades, mas atuam de forma convergente”.

Uma “conjuntura perigosa”, marcada pelo desaparecimento ou descaracterização dos imaginários de emancipação social que as classes populares geraram com suas lutas contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal no século passado. Boaventura não hesita em afirmar: “é preciso ter a coragem de avaliar com exigência crítica os processos e os conhecimentos que nos trouxeram até aqui e de enfrentar com serenidade a possibilidade de termos de começar tudo de novo”.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores europeus da área de ciências sociais, Boaventura de Sousa Santos nasceu em 1940, em Coimbra, Portugal. Professor universitário, cientista social, jurista, escritor, filósofo da ciência, ativista e poeta, Boaventura de Sousa Santos é autor de Direito dos Oprimidos, sua tese de doutorado, que se transformou num marco fundamental na sociologia do direito. Um dos principais impulsionadores do Fórum Social Mundial, defende a ideia de que os movimentos sociais e cívicos fortes são essenciais ao controle democrático da sociedade e ao estabelecimento de formas de democracia participativa.

 

Em entrevista concedida à revista Carta Capital, questionado sobre o Brasil, com o traumático impeachment de Dilma Rousseff, confirmar ou não a tese, exposta na introdução de A difícil democracia, de que os países da América Latina e do sul da Europa tendem a ser caracterizados por grande instabilidade política, o sociólogo disse: “Houve interrupção democrática semelhante à que tinha sido ensaiada em Honduras e no Paraguai e, como nas anteriores, levada a cabo com a aprovação ativa dos Estados Unidos. Tratou-se de uma passagem brusca e sem respaldo constitucional de uma democracia de baixa intensidade, já que eram bem conhecidos os limites do sistema político e do sistema eleitoral em refletir a vontade das maiorias, para uma democracia de baixíssima intensidade, com maior distância entre o sistema político e os cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menor proteção social das classes mais vulneráveis, menos confiança na intervenção moderadora dos tribunais.

No caso do Brasil, o que mais custa a aceitar é a participação agressiva do sistema judiciário na concretização do golpe, tendo em vista dois fatores que constituíam a grande oportunidade histórica de o sistema judicial se afirmar como um dos pilares mais seguros da democracia brasileira. Por um lado, foi durante os governos PT que o sistema judicial e de investigação criminal recebeu o maior reforço não só financeiro como institucional. Por outro lado, era evidente desde o início que Dilma Rousseff não tinha cometido qualquer crime de responsabilidade que justificasse o impedimento. Estavam criadas as condições para encetar uma luta veemente contra a corrupção sem perturbar a normalidade democrática e, pelo contrário, fortalecendo a democracia.  Por que é que esta oportunidade foi tão grosseiramente desperdiçada?  O sistema judicial deve uma resposta à sociedade brasileira”.

Na mesma entrevista, comentou também a famigerada PEC 241, acerca da qual foi categórico: “A PEC 241 é um escândalo constitucional e político, produto de um descontrolado fundamentalismo ideológico, desprovido de qualquer eficácia e apenas adotado com dois objetivos de alto poder simbólico. Primeiro, mostrar ao povão pobre e empobrecido a impossibilidade de esperar algo do Estado, como se ninguém pudesse lhe prometer nada para além do que a direita está disposta a dar-lhe. Segundo, sublinhar com uma risada legislativa o desprezo, o revanchismo e a arrogância com que, do alto da sua vitória, contempla a ruína da esquerda. O excesso desta medida, nunca adotada em qualquer país por um período de 20 anos, deve ser visto pela esquerda como um sinal de debilidade”.

E, questionado sobre como resistir a esse retrocesso, Boaventura apontou: “O caso português tem algum interesse neste contexto. Os portugueses foram vítimas entre 2011 e 2015 de um fundamentalismo ideológico do mesmo tipo. O Primeiro Ministro de então, Passos Coelho, chegou a dizer que era preciso ir mais longe nas políticas de ajuste estrutural do que a própria troika austeritária exigia, formada pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. O maximalismo conservador fez soar nos partidos de esquerda um alerta que não se ouvia há setenta anos:  a arrogância da direita ameaçava destruir tudo o que em termos de inclusão social tinha sido democraticamente construído pelo país depois da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974.

O país enfrentava uma situação de fascismo social que mais tarde ou mais cedo poderia levar ao fascismo político. Perante isto era preciso esquecer provisoriamente todas as diferenças ideológicas que pudessem impedir uma aliança das forças de esquerda para pôr termo ao pesadelo reacionário. Assim se construiu uma aliança de governo entre o Partido Socialista, a coligação CDU (comunistas e verdes) e o Bloco de Esquerda. Este exemplo pode ajudar as forças de esquerda no Brasil, que, ao contrário de Portugal, se inclui um forte movimento popular frentista, a esquecer as diferenças e articular-se procurando seguir a sabedoria popular: em momentos como este, que se vão os anéis e fiquem os dedos”.

 

Comentando A difícil democracia, em artigo também publicado no blog da Boitempo, o sociólogo brasileiro Frei Betto reflete:

“Há futuro para a democracia nessa globocolonização comandada pela ditadura do capital? Boaventura de Sousa Santos nos oferece uma radiografia crítica dos diversos modelos de democracia. E a ressitua como uma nova utopia.

O autor resgata pensadores políticos como o peruano Mariátegui, ressalta o protagonismo dos movimentos negro e indígena e nos propõe uma nova gramática social que rompa com o autoritarismo, o patrimonialismo, o monolitismo cultural, o não reconhecimento da diferença. Se queremos levar a democracia a sério, devemos romper os limites da democracia neoliberal e desencadear um processo que altere as relações de poder desigual para relações de poder compartilhado. Como ele bem escreve, ‘a democracia tem de existir, muito além do sistema político, no sistema econômico, nas relações familiares, raciais, sexuais, regionais, religiosas, de vizinhança, comunitárias’. E conclui: ‘Socialismo é democracia sem fim’”.

 

 

 

A DIFÍCIL DEMOCRACIA: REINVENTAR AS ESQUERDAS

Autor: Boaventura de Sousa Santos
Editora: Boitempo
Preço: R$ 36,40 (224 págs.)

 

 

 

 

 

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