Literatura

Símbolos de mansidão e sacrifício

17 novembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

O medo estava no princípio de tudo.

Fouad El Khoury, “The Flag”, 1982

Um dos finalistas do Prêmio Jabuti deste ano e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016 na categoria de Autor estreante: A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf, é um romance sobre o medo e suas consequências; sobre o medo como herança. É uma arqueologia de raízes históricas.

O livro fundamenta-se em uma narrativa que o autor havia escutado do tio há alguns anos, que rompeu com o silêncio de sua família sobre os episódios passados por seus ancestrais no Líbano. Contou-lhe sobre a morte dos irmãos de seu avô pelos turcos, narrou histórias de estavam no subterrâneo da família. No entanto, a narrativa não se restringe a autobiográfica; é permeada pelo imaginário fantástico das fábulas e parábolas do mundo árabe. Os carneiros falam e se transformam em humanos, estão no livro como um símbolo de mansidão e sacrifício.

Um romance sobre reinvenção, transformação e a possibilidade de redenção de uma história familiar. Nesse sentido, compreende-se que o segredo da família levou Marcelo Maluf a entender sua própria narrativa; bem como a compreender que receios são transmissíveis. O medo da ​guerra, o medo de viver em plenitude, o medo do imigrante, o medo do desconhecido, o medo de se conhecer, o medo da morte, o medo do fracasso. O medo como herança familiar sobrevivendo por gerações e se infiltrando no inconsciente da família. Mas é, entretanto, também, um livro sobre redenção, sacrifício e transformação.

Na narrativa, Assaad Simão Maluf veio do Líbano para o Brasil ainda menino, depois de viver uma tragédia na família, no ano de 1920, período final do domínio do império otomano. Marcelo, seu neto, não o conheceu. Quando nasceu, em janeiro de 1974, Assaad Simão já havia falecido. Apenas sabia de seu avô pelas histórias que contavam os seus pais e tios.

Da distância entre avô e neto, irrompe o veio deste romance lírico e sensível. Na busca pela compreensão de sua própria identidade, bem como a dos seus antepassados, Marcelo se vê no ano de 1966, na casa de seu avô, na cidade de Santa Bárbara D`Oeste, interior de São Paulo. ​Sentado à janela da casa, enquanto Assaad escreve em um caderno suas memórias sobre a infância no Líbano, quando pastoreava carneiros nas montanhas de Zahle; Marcelo acompanha, como uma presença invisível, a escrita do avô, que está vivendo os seus últimos dias. Dessa atmosfera, imaginária e ardente, entre o autobiográfico e o fantástico, nasce um intenso diálogo das lembranças de Assaad e da narrativa de Marcelo, que se cruzam e se tocam numa jornada de expurgação dos medos e compreensão de si mesmo.

Seu passado presentifica-se pela escrita, no entanto, irresoluto.

Em artigo, publicado no jornal Folha de São Paulo, Diogo Bercito cita o autor, que conta: “Meu pai sempre foi receoso. Eu não entendia de onde vinha aquele medo. Ele tinha um pavor imenso da violência. Meu avô morreu com muita mágoa dos turcos. Ele nunca perdoou. Comecei a entender muitas coisas que estavam embaixo dos panos”. Bercito aponta, no entanto que a partir da base real “Maluf recria em estilo fantástico. Prestando homenagem às Mil e Uma Noites, ele encaixa contos dentro de outros contos e povoa seus relatos com gênios. A imagem mais recorrente é a dos carneiros que dão título à obra, dos quais o escritor conclui que o berro contém uma ‘imensidão íntima’. São animais, diz, que têm de ser acariciados no queixo. No livro, eles conversam com o avô. ‘Meu avô foi pastor no Líbano, e a partir dessa imagem eu soube que os carneiros iam ter um papel importante no livro. Quis aproximar o homem da natureza’”.

O crítico Alfredo Monte, em resenha, aponta: “A mansidão, até pela acepção bíblica de que se beneficiou (“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra”, lemos em Mateus 5:5), pode ser uma virtude (rimando com a “íntima imensidão”, vida interior fecunda) ou uma falta, vinculada a um histórico de vitimização, a uma longa sina familiar de bodes expiatórios, como acontece em A Imensidão Íntima dos Carneiros […]. E pode ser também rompida por um ato de violência (que se torna um segredo pessoal), nem por isso libertador. […] A narrativa pode aproximar ‘em espírito’ os dois porque Maluf resgata a milenar maneira árabe de contar histórias, rompendo limites estritos entre espécies e seres (a tradição ocidental não tinha esses diques, o realismo e a necessidade de verossimilhança acabaram contaminando a literatura que levamos ‘a sério’), usando uma técnica de encaixes (de historietas e provérbios); assim, os animais falam e os humanos metamorfoseiam-se. Os carneiros do título estão presentes em todos os níveis (ligados aos quatro elementos), do realista—pois são o ganha-pão ancestral— ao onírico (aparecem nos sonhos do neto). Têm papel-chave em termos de fábula, e da boca de um deles saem as “morais da história”, os motes de sabedoria imemorial (como a de que os mansos herdarão a terra) equacionando-os problematicamente com o fundo alegórico desse papel cíclico de ‘carneiro’, de pharmakos: o medo inoculado na sucessão das gerações”.

O júri do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, composto por Adriano Schwartz – pós-doutor pela Princeton University, e professor e orientador na USP nos segmentos de teorias da ficção, relações entre autobiografia e ficção e romance contemporâneo -, Elisabeth Brait – crítica, ensaísta, doutora em Linguística na USP, atua nas áreas de teoria e análise do texto e do discurso, estudos bakhtinianos, análise dialógica do discurso, leitura e análise do verbo-visualidade e estudos literários -, Estevão Azevedo – editor e mestre em literatura brasileira pela USP, vencedor da oitava edição do Prêmio São Paulo de Literatura com Tempo de Espalhar Pedras -, Heloísa Jahn – tradutora e editora – e Ronald Polito de Oliveira – poeta e tradutor -, disseram, acerca do romance de Marcelo Maluf: “Romance ao mesmo tempo delicado, sobretudo na linguagem, e forte, na ideia de que toda tragédia perpetua, ainda que de forma não aparente. O autor bebe com felicidade incomum na tradição da narrativa e das fábulas para dar conta de uma trama que se passa em tempos e realidade tão distante”.

 

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[trecho]

 

O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, próximo às colinas de Golan. No ano 427 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava: “Morra como um homem, meu filho, não chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.

O medo seguiu sua jornada, como as águas de um rio fazendo o seu percurso, e desaguou em Simão, meu bisavô, ao ouvir o trotar dos cavalos dos soldados turcos aproximarem-se da aldeia. O medo estava em Assaad, seu filho, quando pastoreava carneiros nas montanhas de Zahle, e estava em Michel, meu pai, quando vendia cambraia, gabardine e organza em sua pequena loja em Santa Bárbara D’Oeste.

Quando eu nasci, sob o sol daquele mês de janeiro, o medo estava no meu primeiro choro. O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto. Um medo que subiu e desceu as montanhas, que atravessou o oceano num navio e veio se misturar ao fluido amniótico que me envolvia no  ventre materno. O medo estava nos olhos da minha mãe na hora do parto, nas mãos suadas do meu pai e no cor- po inteiro do médico que me segurava pelos pés. O medo estava na corda envolvendo os pescoços de Adib e Rafiq e estava nas mãos do algoz que forjou o seu nó.

Aprendi que o medo nos preserva de viver e nos dá a morte em vida. O medo também nos torna cruéis e, escravos dele, podemos nos tornar assassinos. E é da morte que todos da nossa família têm medo desde sempre. Temos medo e por isso preservamos tanto as nossas vidas a ponto de não  vivermos tudo o que poderíamos ter vivido.

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A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS CARNEIROS

Autor: Marcelo Maluf
Editora: Reformatório
Preço: R$ 35,00 (126 págs.)

 

 

 

 

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“O que tem nesse caderno, meu pai?”, Sami observa que ele o segura com força.

“Contas, meu filho. Contas a pagar.”

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