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A oleira ciumenta

14 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Há milênios, sob todas as suas formas – barro esmaltado ou não, faiança, porcelana – a cerâmica está presente em todos os lares, humildes ou aristocráticos. Tanto que os antigos egípcios diziam “meu pote” para dizer “meu bem”, e nós mesmos, quando falamos em reparar danos de qualquer espécie, ainda dizemos ‘pagar os vasos quebrados’ [payer les pots cusses].”

Cerâmica tapajônica

Um percurso por entre os meandros do complexo terreno dos mitos ameríndios, cujos passos foram registrados neste profundamente interessante A oleira ciumenta. Lévi-Strauss põe em relação a figura da oleira, da ceramista, com o sentimento do ciúme, estabelecendo a partir dela uma ramificação de analogias com as mais diversos tribos e povos.

O último capítulo do volume, “‘Totem e Tabu’ Versão Jivaro”, é inteiro dedicado ao diálogo crítico entre o estruturalismo e a psicanálise. Lévi-Strauss combate, em Freud, sua suposição de afinidade entre neuróticos, crianças e primitivos. O antropólogo também põe em questão a primazia do “código sexual” na interpretação dos símbolos míticos e oníricos.

Ao longo do livro, pode-se saber o que há de comum entre um pássaro insectívoro, a arte da olaria e o ciúme conjugal, ou entre o pensamento especulativo dos índios e o dos psicanalistas, ou mesmo entre uma tragédia de Sófocles e uma comédia de Labiche.

Segundo Flávia Leme de Almeida, no primeiro capítulo do livro Mulheres recipientes: recortes poéticos do universo feminino nas artes Visuais [Editora UNESP, 2010], “No princípio era a cerâmica: a volta às origens”: “Um dos modos de refletir sobre a história das civilizações ancestrais é através da cerâmica”. Resistente ao tempo, diz Almeida, as cerâmicas encontradas por arqueólogos “puderam ter subsídios consideráveis para identificar e explicar o modus vivendi dos nossos antepassados. A cerâmica era feita com finalidades objetivas e simples, sendo de uso cotidiano (recipientes usados para alimentar o corpo) ou ritualístico (recipientes usados para alimentar a alma). Lévi-Strauss, no livro A oleira ciumenta, relata diversos rituais de preparo da cerâmica, um deles chamado ‘ligadura dos potes’ da aldeia de Awaxawi, era feito para obter-se chuva e consistia em preparar ritualisticamente dois potes decorados representando o homem e a mulher. Ambos permaneciam boa parte do ano enterrados e quando retirados deveriam ser protegidos do sol e levados para uma cabana revestida de terra para que o ritual pudesse acontecer”. A cerâmica era, a comentadora o mostra, uma atividade “quase que restrita às mulheres, na maioria das vezes de caráter sagrado e envolta em uma série de especificidades, cuidados e proibições. Paralelo a tudo isso havia sempre inúmeros mitos que remetiam às explicações sobre a origem e a função da argila entre os humanos. Para ilustrar esse fato, Lévi-Strauss nos mostra uma das diversas origens mitológicas da argila na terra e a sua clara ligação com as mulheres através de um mito Jivaro. Para esse povo, a palavra nui significa argila e, no mito da origem da cerâmica, que ocorre junto ao mito da criação do mundo ‘[…] a abóboda celeste é uma grande tigela azul de cerâmica. Foi com barro que o Criador fez Nantu, a Lua, que irá se casar com Sol, e é com argila que ela modela um filho, em seguida destruído pelo Engolevento.’ Esse filho recebe o nome de Nuhi (cf. nui, ‘argila’) e após sua morte, seu corpo transformou-se na terra em que hoje vivemos. O autor continua a descrição deste mesmo mito, afirmando que Sol e Lua tiveram como descendentes o Preguiça, o Boto, o Caititu e a Mandioca, uma filha e depois disso ficaram estéreis. A mãe de ambos lhes entregou dois ovos: um se perdeu e do outro nasceu Mika, uma menina. Mais tarde Mika se casaria com Unushi, seu irmão Preguiça. Mika além de ser a padroeira da cerâmica, é também o nome ritualístico dos grandes vasos cerâmicos em que se coloca a chicha a ser consumida nas cerimônias. Lévi-Strauss cita que o antropólogo Karsten destacou a proximidade fonética das palavras mulher ‘nua’ e cerâmica ‘nui’. ‘Já apontei alhures’ – diz ele – ‘para a interessante conexão entre a mulher, de quem a cerâmica é uma das atribuições, e a terra ou argila que ela utiliza. No pensamento dos índios, o vaso de argila é uma mulher.’ O autor ainda ressalta que é tarefa da mulher fabricar e utilizar os recipientes cerâmicos, ‘[…] pois a argila de que são feitos é fêmea, como a terra – em outras palavras, tem alma de mulher.”

A padroeira da cerâmica, “conhecida também como Mãe Terra, Avó da argila, Senhora da argila e dos potes de barro”, diz Almeida, “era considerada uma benfeitora já que a humanidade lhe devia não apenas a matéria-prima, mas as técnicas e a arte de decorar potes. Alguns mitos considerados por Lévis-Strauss, em contrapartida revelavam uma faceta temperamental ciumenta e rabugenta”.

Betty Mindlin, no artigo “A cabeça voraz”, analisa os significados de um mito indígena sobre a cabeça voadora e voraz, registrado pela autora em vários grupos indígenas da Amazônia, como os Tupari, os Macurap, os Jabuti, os Aruá, os Sateré-Mawé; tendo, cada versão do mito, um enredo diferente, o tema intrigante, porém, é sempre o mesmo: a mutilação do corpo, a cabeça que se transforma ou cola-se num outro ser. Mindlin aponta que Lévi-Strauss dedicou a este mito boa parte de dois de seus livros magistrais, A origem das maneiras da mesa e A oleira ciumenta, e que o mesmo mito foi usado por Mário de Andrade em Macunaína. Segundo Mindlin: “Se Mário de Andrade tornou a assombrosa cabeça voadora familiar, é com Lévi-Strauss que percebemos como um mito, à primeira vista excêntrico e estrambótico, é apenas uma ponta, um nó, um fragmento de um verdadeiro caudal de histórias semelhantes, transformações das primeiras, com inovações, inversões, oposições diversas de partes dos mitos, mas que inserem num todo o que parecia feérica imaginação isolada. Uma boa parte da Origem das maneiras de mesa e da Oleira ciumenta dedica-se à cabeça decapitada. Lévi-Strauss não está interessado em interpretar qualquer mito separadamente; o que lhe interessa é o conjunto, as transformações dos motivos de um mito para outro, a linguagem dos mitos entre si, a estrutura dos mitos composta das mesmas oposições com sentidos e posições diferentes; mas é a cabeça cortada que, como a lua em que se metamorfoseia, ilumina seus livros”.

Especificamente sobre A oleira ciumenta, Mindlin sintetiza: “O livro gira em torno de um mito Jívaro em que Sol e Lua são casados com uma mesma mulher, a Engole-vento. Esta gosta do Sol, quente, mas tem medo de Lua, que é muito frio. Lua, humilhado, foge para o céu por um cipó, não sem antes soprar o sol, eclipsando-o. A mulher Engole-vento fica, assim, sem marido algum. Vai para o céu atrás deles, levando um cesto cheio de argila, mas Lua, para se livrar dela, corta o cipó pelo qual ela subia. A argila se espalha pelo mundo. A mulher transforma-se no pássaro que tem seu nome, chorando sempre nas noites de lua”. É a partir do mito Jívaro, diz a antropóloga brasileira, que “Lévi-Strauss acentua como o ciúme conjugal é característica dos engole-ventos (se Sol e Lua soubessem dividir bem a mulher engole-vento, nada teria acontecido): ‘O pássaro aparece em primeiro plano nos mitos cujo tema é a separação ou desentendimento entre os sexos, devido ao ciúme entre dois homens com relação a uma mulher, ou ciúme de um ou uma amante rejeitado(a), ou ainda à impossiblidade da união de dois amantes, ou aos desentendimentos de um casal. Mesmo nos mitos em que o engole-vento aparece como autor ou resultado de uma decapitação, os motivos mencionados não estão totalmente ausentes: a decapitação também acarreta uma separação. Como o casal separado, a cabeça ou o corpo desligados um do outro sofrem a perda da outra parte’”. Ao longo do livro, através de uma série de mitos, o autor, conforme aponta Mindlin, “vai dando ênfase à oralidade, à avidez e à gula como atributos fundamentais dos engole-ventos. Num mito Kayapó, ‘um marido malvado trata a mulher como escrava, e proíbe-a de comer carne e de tomar água. Durante a noite, ela sente uma sede terrível. Sente vontade de aproveitar enquanto o marido dorme e ir ao lugar onde as rãs coaxam, sinal de que lá deve haver água; mas teme que o homem descubra a sua ausência. Então ela tem a idéia de se dividir em dois pedaços; o corpo ficaria ao lado do marido, e a cabeça voaria, usando os longos cabelos como asas, para matar a sede. Mas o marido acorda, percebe o truque da mulher e espalha as brasas da fogueira. A cabeça não consegue encontrar o caminho de volta para a casa, agora às escuras. Voa a noite toda em busca de seu corpo, enquanto o marido o assa. Continuando a voar, transforma-se em Engole-vento. Passamos assim do motivo do guloso ou da gulosa egoísta para o da decapitação’”.

Sobre o debate estabelecido por Lévi-Strauss entre a psicanálise e a antropologia estrutural, Franklin Goldgrub, no artigo “O oleiro ciumento”, publicado no jornal Folha de São Paulo, em 13 de julho de 1986, comenta que, no livro, o antropólogo “conclui mais uma vez que a psicanálise é uma mitologia menor e pretensiosa, cujas descobertas constituem uma paródia involuntária dos tesouros do pensamento selvagem”. Segundo Goldgrub, o início do capítulo final “é contundente: logo no primeiro parágrafo ficamos sabendo que se Freud teve a desfaçatez de sub-titular seu ‘Totem e Tabu’ com a frase ‘sobre algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos’, ‘Lá Potière Jalouse’ postulará inversamente a proximidade ‘… entre a vida psíqui­ca dos selvagens e a dos psicana­listas’”.

Goldgrub aponta: “A decisiva prova da superiori­dade da inventiva indígena sobre a do criador da psicanálise apóia-se na comparação entre a obra prima deste último no gênero, a saber, o mito do assassinato do pai prime­vo pelos filhos que condenara ao celibato, com o seguinte: ‘Apro­veitando-se de uma longa ausência de seu pai Unushi, a cobra Ahimbi deita-se com sua mãe Mika, um jarro de cerâmica: como se os dois transgressores simbolizassem respectivamente os órgãos mascu­lino e feminino – serpente e vaso – constrangidos pela natureza a unir-se desafiando as regras soci­ais que restringirão essa liberda­de’”.

De acordo com a antropóloga brasileira Beatriz Perrone-Moisés, professora da USP, “Strauss mostra a distância que separa a análise estrutural e a psicanálise de Freud no estudo dos mitos. Em outros momentos se alia Freud e critica Jung. Assim polemiza e faz o caminho inverso dos psicanalistas: interpreta as teorias destes à luz dos costumes e conceitos existentes há milhares de anos nas comunidades indígenas e americanas”.

Para Mariza Martins Furquim Werneck, professora de antropologia na PUC-SP, cuja tese de doutorado trata dos operadores estéticos na obra de Claude Lévi-Strauss, “as relações entre a psicanálise e a antropologia sempre foram marcadas por polêmicas, embates e desconfianças mútuas”. Segundo a professora, “numa discussão preliminar pode-se dizer que Lévi-Strauss, à maneira de Freud, abriga seus fragmentos de mitos em um lugar tão secreto como a máquina óptica postulada por Freud: imagina um quarto de espelhos onde, por meio de uma fresta, ou de uma pequena abertura pontual, pela qual penetram raios de luz, pode surpreender o mito em suas quase infinitas variações. Essa câmara de espelhos, imagem barroca por excelência, onde tudo é reflexo, é descrita de diferentes maneiras ao longo de sua obra. Assim como a matéria mítica, e assim como os sonhos, esse recinto secreto vai e volta, se deforma, ou se inverte.

Às vezes assume a forma de um instrumento óptico, como os utilizados por Leonardo da Vinci ou Albrecht Dürer, para desvendar as leis da perspectiva. Em outros momentos se metamorfoseia em uma câmara obscura. Uma de suas variantes é o espelho deformante, com o qual, conferindo visibilidade ao próprio exercício do pensamento, fecha A oleira ciumenta. O caleidoscópio – igualmente uma metáfora freudiana – pode ser pensado como a versão miniaturizada dessa câmara de espelhos, seu modelo reduzido, por meio do qual podem ser observados os estilhaços de mitos, seus dejetos e ruínas, transfigurados em magníficas rosáceas luminosas”.

 

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Trecho da Introdução

 

Na mitologia proto-indochinesa do Vietnã central, o Engole-vento tem um lugar de honra, tanto como pássaro ferreiro, emissário do Trovão, quanto como pássaro rizicultor: sabe fazer boas colheitas, e pode encher a barriga, razão pela qual tem um nome que significa “aquele que come até ficar satisfeito”. Veremos que os mitos sul-americanos associam o Engole-vento à origem do barro para cerâmica. Portanto, os mitos proto-indochineses promovem o Engole-vento — da cerâmica à metalurgia — e, ao mesmo tempo, a avidez que os mitos sul-americanos lhe atribuem, como veremos, adquire uma conotação positiva em vez de negativa. Mas a interpretação aqui esboçada requer cautela. Pois se, como acreditam diversos estudiosos, os montanheses do Vietnã consideram o Engole-vento como um mestre ferreiro porque o seu grito soa, para eles, como um martelo batendo no metal, seria desnecessário recorrer a outras considerações.

Os povos das florestas e savanas da América tropical, a quem este livro se dedica especialmente, não

conheciam o trabalho do metal. Suas artes do fogo se limitavam à cozinha e à cerâmica. Talvez por isso tenham investido nelas a noção, ainda livre, de um combate cósmico, que de certo modo prenuncia aquele em que o ferreiro arranca o fogo do céu para colocá-lo a serviço dos humanos.

Nos quatro volumes das Mythologiques mostrei que, na América, é o fogo de cozinha que está em jogo no combate entre o povo de baixo e o povo de cima. Veremos agora que, para os mesmos índios, a argila, que também tem de ser cozida e, portanto, também requer o fogo, é o que está em jogo em um outro combate, desta vez entre um povo celeste e um povo da água ou do mundo subterrâneo. Testemunhas passivas dessa luta, os humanos são, por acaso, os beneficiados. Ou então os humanos encontram o povo da água, de quem recebem a cerâmica, com certas condições e riscos.

A idéia de que o ceramista e os produtos de sua indústria desempenham um papel mediador entre as forças celestes e as forças terrestres, aquáticas ou subterrâneas, pertence a uma cosmogonia que não é exclusiva da América.

[…]

Entretanto, minha intenção aqui não é realizar um estudo comparativo da ideologia da cerâmica em

todo o mundo. Este livro, consagrado a mitos das duas Américas, coloca e tenta resolver três problemas que enumero a seguir, não na ordem em que aparecem, mas na de generalidade crescente. Um dos problemas diz respeito à etnografia. Tentarei trazer à luz analogias tanto de estrutura quanto de conteúdo, entre mitos provenientes de regiões muito distantes entre si: o sul da Califórnia e, no outro hemisfério, a região leste dos Andes, começando pelos Jivaro, ao norte, e indo

até as tribos do Chaco, no sul, passando pelos Kampa, Machiguenga e Tacana. É como se nas duas Américas, acompanhando as montanhas, houvesse uma trilha arcaica, ao longo da qual tivessem sido depositados vestígios das mesmas crenças e das mesmas representações. Um outro problema, com o qual se inicia este livro, e que começou a ser estudado em um curso no Collège de France, em 1964-1965 (cf. Minhas palavras: pp. 107-109), diz respeito à lógica dos mitos. Partindo de um mito bem localizado e que parece, à primeira vista, relacionar por capricho termos absolutamente heteróclitos, seguirei passo a passo as observações, as inferências empíricas, os julgamentos analíticos e sintéticos, os raciocínios explícitos e implícitos que explicam essas ligações. O terceiro problema ocupa os últimos capítulos, que tratam do pensamento mítico e geral, mostram a distância que separa — nesse e em outros pontos — a análise estrutural e a psicanálise e, finalmente, indagam se o pensamento mítico, longe de representar um modo ultrapassado da atividade intelectual, não estaria presente todas as vezes que o espírito se pergunta o que é a significação.

 

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A OLEIRA CIUMENTA

Autor: Claude Lévi-Strauss
Editora: Edições 70
Preço: R$ 112,80 (248 págs.)

 

 

 

 

 

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