“Talvez os dois pintores que maior influência exerceram em nosso século sejam Pablo Picasso e Marcel Duchamp. O primeiro pelas suas obras, o segundo por uma obra que é a própria negação da moderna noção de obra”. Assim começa o primeiro ensaio do livro Duchamp ou O castelo da pureza, de Octavio Paz, publicado, no Brasil, pela editora Perspectiva. A comparação segue: “As figurações de Picasso atravessam velozmente o espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp o espaço caminha, se incorpora e, tornado máquina filosófica e hilariante, refuta o movimento com o retarde, o retarde com a ironia. Os quadros do primeiro são imagens; os do segundo, uma reflexão sobre a imagem”. O desenvolvimento da análise é interessante e poético: “Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir as dos olhos, nascem e terminam numa zona invisível. […] o invisível não é obscuro nem misterioso, é transparente”. Segundo o poeta mexicano, Marcel Duchamp define nossa época por suas negações e explorações. Para ele, Duchamp teria sido desde seus primeiros trabalhos sempre “um pintor de ideias”.
Octavio Paz encontrou em Duchamp uma referência nas artes plásticas para um pensamento crítico que vai inclusive de encontro à sua própria criação poética vanguardista, concisa e objetiva, desdobramento de suas pesquisas das funções poéticas da linguagem. Entre os escritores de língua espanhola, Paz e Ortega y Gasset foram os primeiros pensadores a debruçarem-se sobre a tentativa de compreensão, ao longo de toda sua obra, da modernidade. O poeta mexicano via na arte a possibilidade de ruptura, uma alternativa para se criar uma outra modernidade, mais profunda e libertária, alheia às estratégias de domínio. Para Paz, a linguagem da arte encarna uma visão totalizadora de mundo, inclui diferentes culturas e tempos e, assim, assume a exuberância e o caráter enigmático da existência. No processo de desenvolvimento e pesquisa dessa linguagem, a ironia tem papel importante, pois dissolve os sentidos e oculta a presença, permite a percepção do insondável graças a abundância interpretativa e, alheia às certezas indubitáveis, toma partido do inesperado, pondo em crise princípios de identidade.
No cerne da obra de Duchamp – que se manifesta de múltiplas maneiras sem nunca concluir-se, numa unidade tão estrita que no texto é analisada como uma obra só –, Octavio Paz encontra justamente uma ironia peculiar: “Para Duchamp, a arte, todas as artes, obedece à mesma lei: a metaironia é inerente ao próprio espírito. É uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa”. Os enigmas duchampianos tornam-se na leitura de Paz um texto do mundo, desdobrado sobre ironias. É a própria concepção da linguagem que entra em jogo na análise, “a concepção da linguagem como uma estrutura em movimento, essa descoberta da linguística moderna […] para Duchamp, também, é apenas a forma mais afiada e mais eficaz da metaironia”. Conta-se que Duchamp agradeceu à crítica endereçando-lhe um telegrama, irônico, que dizia: “Obrigado. Aprendi muitas coisas”.
DUCHAMP OU O CASTELO DA PUREZA
Autor: Octavio Paz
Editora: Perspectiva
Preço: R$ 12,60 (104 págs.)