“Naquela quinta-feira de começante abril, meu sapiente amigo, mestre Martial Canterel, covidara-me, com alguns outros de seus íntimos, a visitar o imenso parque que rodeia sua bela vila de Montmorecy.
Locus Solus – a propriedade se chama assim – é um calmo refúgio onde Canterel gosta de levar adiante, com toda tranquilidade de espírito, seus múltiplos e fecundos trabalhos. Nesse lugar solitário, ele está protegido das agitações de Paris […]”.
Acaba de ser lançado o livro Locus Solus, de Raymond Roussel, pela Cultura e Barbárie Editora. Pouco divulgada no Brasil, a obra do francês foi, entretanto, ponto de convergência de filósofos e críticos do século xx como suporte e inspiração para o desenvolvimento de questões ontológicas, epistemológicas e estéticas. Na literatura, a influência de Roussel estende-se do surrealismo ao “nouveau roman“. Conhecido por transformar as palavras em imagem, através de seus textos a linguagem separa-se de sua significação comum e atinge outros sentidos. Michel Foucault, no livro consagrado a Roussel – Raymond Roussel (a tradução em português, publicada em 1999 pela Forense Universitária, está indisponível) –, define que há uma linguagem circular nos textos rousselianos, nos quais ele exibe imagens e, em seguida, revela com precisão a história de cada uma delas, bem como seu funcionamento. De modo que há um ciclo, no qual a narrativa recupera a imagem inicial, que fora construída pela linguagem, e a explica. Para Foucault, a explicação repete o processo realizado pelas máquinas e o torna mais palpável e, os textos de Roussel, assim, podem ser considerados uma espécie de demonstração do poder da linguagem, através do qual máquinas e experimentos – existentes apenas através de palavras – tornam-se possíveis.
Locus Solus é o principal livro de Roussel, foi publicado originalmente em 1914. Joca Reiners Terron, em artigo publicado na Folha de São Paulo, fala sobre esse procedimento inovador: “[…] em Neuilly que ele desenvolveu o “procedimento”, nome do método de composição que criou para seus textos em prosa”, procedimento que “mantinha parentesco com a rima. Era, portanto, uma concepção poética e se baseava em sons e em jogos de palavras. O escritor partia de duas frases iguais exceto por duas letras, uma na abertura e outra ao final, e criava a narrativa entre as duas”. O próprio Roussel, em “Como Escrevi Alguns de Meus Livros”, definiu sua estratégia da seguinte maneira: “Com as duas frases encontradas, tratava-se de escrever um conto que pudesse começar pela primeira e terminar pela segunda“; o duplo sentido mantém-se, porém, ao longo de seus textos inteiros. No mesmo artigo, há uma interessante elucidação do tradutor: “Fernando Scheibe […] explica o procedimento tomando por exemplo a expressão “vou-me já”, que, aponta, pode ser lida como “vou mijar”. Segundo ele, assim “se constrói toda uma intriga que permite que sua história comece com alguém dizendo que vai embora e termine com alguém dizendo que vai urinar”.
Segundo Renata Lopes Araujo, estudiosa de língua e literatura francesas pela USP, no artigo “Locus Solus e as máquinas potenciais de Raymond Roussel”, “é possível encontrar nos textos de Roussel máquinas e invenções que, embora impossíveis do ponto de vista da realidade concreta, são “potenciais”, isto é, suscitam nos leitores uma impressão de veracidade e de possibilidade. Essa impressão é gerada não apenas através da “circularidade” da linguagem rousseliana que apresenta os fenômenos e os explica, ou por meio de descrições exaustivas e explicações detalhadas, técnicas igualmente empregadas pelo Realismo (neste caso, com base em realidades concretas), mas principalmente através de sua organização eficaz no texto, o que resulta na comunicação do sentimento de verdade”. No mesmo artigo, Araujo conta: “Com apenas dezessete anos, o escritor francês Raymond Roussel fez uma grande descoberta que transformaria sua vida a partir de então: estava destinado a escrever uma obra genial. Desse estado de espírito surge, dois anos mais tarde, La Doublure, uma extensa poesia sobre um ator substituto e um crime por ele cometido. A fria recepção reservada a um texto que, segundo Roussel, o levaria à glória universal e o tornaria mais famoso e mais conhecido que Napoleão I e Victor Hugo precipita o escritor em uma crise cujo desfecho aconteceria muitos anos mais tarde, com o suicídio em um quarto de hotel na Itália”.
Maurice Blanchot em O livro por vir também comenta as certezas de Roussel sobre seus dons literários – “[…] pode parecer absurdo o sentimento que um dia, na rua, arrebata o desconhecido Raymond Roussel e lhe dá, de um só golpe, a glória e a certeza da glória?” – e o cita: “Como no momento em que eu experimentava a madeleine, toda inquietude sobre o futuro, toda dúvida intelectual se dissipavam. Aquelas que me atormentavam havia pouco a respeito da realidade de meus dons literários, e até mesmo a realidade da literatura, achavam-se anuladas como por encanto“.
Foucault, além da obra Raymond Roussel, na sua História da loucura na idade clássica analisa o espaço da linguagem de Roussel: segundo ele, o lugar por onde a obra fala e se realiza é o vazio – o vazio, o silêncio, fazem-se, paradoxalmente, o próprio lugar da obra: “é o espaço da linguagem de Roussel, o vazio de onde ele fala, ausência pela qual a obra e a loucura se comunicam e se excluem”. Em Raymond Roussel, Foucault define que “trata-se da carência das palavras”, que, sendo “menos numerosas que as coisas por elas designadas”, devem justamente “a essa economia querer dizer alguma coisa”, o que leva ao “fato lingüístico nu: que a linguagem só fala a partir de uma falta que lhe é essencial”.
Outro grande pensador francês leitor de Raymond Roussel foi Deleuze, que, em Diferença e repetição, analisa que Roussel soube “elevar a potência patológica da linguagem a um nível artístico superior. Roussel parte de palavras com duplo sentido ou de homônimos e preenche toda a distância entre estes sentidos com uma história e objetos duplicados, apresentados duas vezes; deste modo, ele triunfa sobre a homonímia em seu próprio terreno e inscreve o máximo de diferença na repetição, como no espaço aberto no seio da palavra”.
A Cultura e Barbárie, fundada em 2009, define-se como uma “editora cooperativa” e dedica-se a publicar autores e textos inéditos ou pouco difundidos no Brasil e na língua portuguesa em geral. A editora também publica o panfleto virtual “Sopro”, dedicado a questões político-culturais. Inteiramente disponível em pdf, o número deste mês é exclusivamente um rico “Dossiê Raymond Roussel”, com textos de interessados e estudiosos brasileiros contemporâneos, além de textos traduzidos de André Breton, do próprio Roussel, George Bataille, Paul Eluard, Jean Cocteau, John Ashbery, entre outros.
A editora disponibiliza as páginas iniciais do livro, contendo o texto de apresentação, o prefácio e o primeiro capítulo.
O caderno “Ilustríssima”, do jornal Folha de São Paulo, também publicou um trecho.
Autor: Raymond Roussel
Editora: Cultura e Barbárie Editora
Preço: R$ 36,00 (344 págs.)