Literatura

Ironia filosófica

20 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Em que está trabalhando?”, perguntaram ao sr. K. Ele respondeu: ” Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”.

 Escritos ao longo de trinta anos, de 1926 a 1956, ano da morte de Brecht, os textos aqui reunidos, são todos relacionados à personagem do sr. Keuner – uma figura inusitada, misto de filósofo, professor e homem de ação, considerado por muitos como um alter ego do autor, combina em doses iguais Karl e Groucho Marx, empregando a dialética e o humor para afinar sua ironia.

A edição da Editora 34, traduzida por Paulo César de Souza, é a mais completa coletânea das Histórias do sr. Keuner de que se tem notícia em qualquer língua, pois é a única que integrou, aos 87 textos comumente conhecidos, mais 58 textos descobertos apenas em 2002 pelo pesquisador Werner Wüthrich em meio aos manuscritos originais deixados por Brecht na Suíça – país em que viveu por cerca de um ano antes de ir para Berlim oriental, onde viveu seus últimos dias. 

Em textos curtos, que podem ter duas páginas ou uma só linha, o sr. Keuner, esse sábio pouco convencional, destila uma filosofia irônica. Um personagem que para Walter Benjamin é astuto, gentil e extremamente capaz de se adaptar a novas situações.

 

 

A editora disponibiliza uma visualização do livro.

 

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Se os tubarões fossem homens

Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais.

Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias, cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim que não morressem antes do tempo.

Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões.

Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. A aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos.

Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos.

Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.

Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciaria imediatamente aos tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.

As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que entre eles os peixinhos de outros tubarões existem gigantescas diferenças, eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro.

Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, havia belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas goelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nos quais se poderia brincar magnificamente.

Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as goelas dos tubarões.

A música seria tão bela, tão bela que os peixinhos sob seus acordes, a orquestra na frente entrariam em massa para as goelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos.

Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, ela ensinaria que só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida.

Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros.

Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar e os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiro da construção de caixas e assim por diante.

Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

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HISTÓRIAS DO SR. KEUNER

Autor: Bertolt Brecht
Editora: 34
Preço: R$ 25,20 (144 págs.)

 

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