matraca

bem compreenderás o sentido das Ítacas

14 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

–  Que esperamos reunidos na ágora?

É que hoje os bárbaros chegam.

– Por que tanta abulia no Senado?

Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?

Porque os bárbaros chegam hoje.

Que normas vão editar os Senadores?

Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.

– Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo

e está sentado frente à Porta Nobre da cidade

posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?

Porque os bárbaros chegam hoje.

E o Autocrátor espera receber

o seu chefe. Mais do que isto, predispôs

para ele o dom de um pergaminho. Ali

fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.

(Konstantinos Kaváfis, “À espera dos bárbaros”, tradução de Haroldo de Campos)

O grego Konstantínos Kaváfis (Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης), considerado o maior poeta da Grécia moderna, não teve nenhum livro publicado em vida, distribuía os poemas em folhas soltas, também publicou alguns em revistas literárias. Seus poemas, 154 reelaborados durante a vida inteira, une citações eruditas à fala cotidiana. Uma obra tão pequena quanto notável, referência definitiva para o modernismo na poesia.

No Brasil, a Cosac Naify publicou um belo livrinho que reúne 15 poemas de Konstantinos Kaváfis traduzidos por Haroldo de Campos. A edição brasileira conta também com organização e rico texto de posfácio assinados pelo especialista em literatura grega, Trajano Vieira. A coletânea, bilíngue, buscou manter a sonoridade original dos textos na escolha das palavras. A inédita tradução, empreendida nos últimos anos de vida de Haroldo de Campos, transborda a genialidade que fez desse poeta um tradutor ímpar. A edição traz ainda, à maneira de epígrafe, um poema kavafiano de Haroldo, “O alexandrino”, em que homenageia o poeta grego. Há também um texto do tradutor sobre os dilemas e soluções na tradução do poema “Ítaca”.

Segundo Mariana Ianelli, em resenha publicada no jornal O Globo, o que “pode parecer uma pequena amostra, na verdade, logo prova ter “muito mais de Kaváfis do que poderemos encontrar em edições mais dilatadas”, como observa Trajano Vieira. Isso porque sua poesia heterogênea, que une diferentes estratos linguísticos do grego, recebeu um não menos complexo método de abordagem. Traduções do francês, italiano, inglês, alemão e espanhol, além de duas traduções para o português, uma do poeta Jorge de Sena, a outra de José Paulo Paes, serviram de base para o trabalho de Haroldo, que, embora não tivesse domínio do grego moderno, contava com certo conhecimento do grego clássico. Sua meta foi absolutamente original: “fingir” a sonoridade kavafiana na escolha das palavras, intentando aquele raro equilíbrio entre o coloquial e o erudito que constitui uma das marcas do poeta de “À espera dos bárbaros”. É justamente o processo de tradução deste célebre poema que Haroldo descreve em “Kaváfis: melopeia e logopeia”, texto publicado originalmente em 1984 que também integra o volume. Haroldo explica o “movimento pendular da ‘transcriação’” que o levou a uma alusão a Drummond ao final do poema — “E nós, como vamos passar sem os bárbaros?/ Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução” —, onde o propósito de “‘grecizar’ o português” se vincula a uma recontextualização de Kaváfis no panorama da tradição literária brasileira”.

Para a professora da UFSC Patricia Peterle, em resenha publicada no Jornal Rascunho, o “livro/texto traduzido é a materialidade apresentada ao leitor, mas o que está por trás desse fato? A tradução de poemas, romances, etc. não é um produto, é um complexo e imbricado processo de ajustes, negociações (para lembrar um livro de Umberto Eco) e tensões, que muitas vezes não são claras e transparentes. Pensar a tradução nessa perspectiva, portanto, é uma questão fundamental. De fato, traduzir é ler. Ler é uma forma de poder. Atribuir significados, ressemantizar também constitui um poder. Como pensar a(s) relação(s) do Haroldo de Campos leitor de poesia; Haroldo poeta; Haroldo tradutor; Haroldo leitor de traduções?”. Segundo Peterle, em “O alexandrino”, “de forma delicada, Haroldo em versos traça o perfil de Kaváfis: “ele à sua/ mesa escreve […] e volta-se/ de novo para o/ papel continua a metrificar suas estanças/ é paciente espera — mas tão/ carregados de futuro que neles um/ sempre moderníssimo tino se re-/-pristina minuto a minuto esbanjando/ atemporânea pervivência:/ se chama konstantinos kaváfis […]” Como pensar essa “atemporânea pervivência”? Atemporânea, qualidade que independe do tempo, característica confirmada pela segunda palavra, um empréstimo do espanhol, que em português estaria para sobrevivência. Todavia, o termo “pervivência” talvez tenha outras nuances. Em latim, pervivere, verbo intransitivo, significa continuar a viver, viver por meio de ou através de. Uma vivência que continua independentemente do tempo, ela pervive. Um Kaváfis que continua vivo, ou melhor: renasce e revive, por meio da leitura-tradução de Haroldo de Campos. Um Kaváfis que é aquele primeiro, mas que também é outro, por meio da tradução, que renova esse primeiro. Uma origem, para lembrar Walter Benjamin, que não é estática e única, inserida no fluxo do devir, é marcada pela restauração e pela abertura. Reconstituição, de um lado, e incompletude, de outro: aqui se insere o complexo processo de tradução”.

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ÍTACA

 

Quando, de volta, viajares para Ítaca

roga que tua rota seja longa,

repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.

Aos Lestrigões, aos Cíclopes,

ao colério Posêidon, não temas:

tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro,

se mantiveres altivo o pensamento e seleta

a emoção que tocar teu alento e teu corpo.

Nem Lestrigões nem Cíclopes,

nem o áspero Posêidon encontrarás,

se não os tiveres imbuído em teu espírito,

se teu espírito não os suscitar diante de ti.

Roga que tua rota seja longa,

que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão.

Com que euforia, com que júbilo extremo

entrarás, pela primeira vez num porto ignoto!

Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas;

madrepérolas e corais, âmbares e ébanos

e voluptuosas essências aromáticas, várias,

tantas essências, tantos arômatos, quantos puderes achar.

Detém-te nas cidades do Egito -nas muitas cidades-

para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.

Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.

Tua sina te assina esse destino,

mas não busques apressar tua viagem.

É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,

e que aportes velho, finalmente, à ilha,

rico do muito que ganhares no decurso do caminho,

sem esperares de Ítaca riquezas.

Ítaca te deu essa beleza de viagem.

Sem ela não a terias empreendido.

Nada mais precisa dar-te.

Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.

Agora tão sábio, tão plenamente vivido,

bem compreenderás o sentido das Ítacas.

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POEMAS DE KONSTANTINOS KAVÁFIS

Autor: Konstantinos Kaváfis
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 32,90 (64 págs.)

 

 

 

 

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