No livro Diante da imagem – Questão colocada aos fins de uma história da arte, o historiador da arte Georges Didi-Huberman – professor da École des Hautes Études, em Sciences Sociales, em Paris – pergunta: o que ocorre quando nos colocamos diante da imagem?
O autor, no ensaio “Diante do tempo” – conforme publicado na revista Polichinelo – , apresenta a discussão que guia a argumentação desenvolvida em Diante da imagem: “Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo. Como o pobre iletrado da narrativa de Kafka, estamos diante da imagem como Diante da Lei: como diante do vão de uma porta aberta. Ela não nos esconde nada, bastaria entrar nela, sua luz quase nos cega, ela nos impõe respeito. Sua própria abertura – não falo do guardião – nos faz parar: olhá-la é desejar, é estar à espera, é estar diante do tempo. Mas de que gênero de tempo? Que plasticidades e que fraturas, que ritmos e que choques do tempo podem estar em questão nesta abertura da imagem?”. Para o crítico, deter-se, como exemplifica, “diante do painel de Fra Angelico” significa, “em primeiro lugar, tentar dar uma dignidade histórica, ou seja, uma sutileza intelectual e estética, a objetos visuais considerados até então inexistentes ou, pelo menos, privados de sentido. […] Diante do painel, é a própria representação que teria de ser questionada. Com o comprometimento de se engajar em um debate de ordem epistemológica sobre os meios e os fins da história da arte como disciplina”. Seria necessário, para ele, tentar, “em suma, uma arqueologia crítica da história da arte própria a destituir o postulado panofskiano da “história da arte como disciplina humanista”. Para isso, seria preciso colocar em questão todo um conjunto de certezas quanto ao objeto “arte” – o objeto mesmo de nossa disciplina histórica –, certezas que têm por pano de fundo uma longa tradição teórica que vai, particularmente, de Vasari a Kant e além dele (especialmente, até o próprio Panofsky). Deter-se diante do painel não é apenas interrogar o objeto de nossos olhares. É também se deter diante do tempo. É, então, na história da arte, interrogar o objeto “história”, a própria historicidade. Tal é a aposta do presente trabalho: estimular uma arqueologia crítica dos modelos do tempo, dos valores de uso do tempo na disciplina histórica que desejou fazer das imagens seus objetos de estudo. Questão tão vital, concreta e quotidiana – cada gesto, cada decisão do historiador, desde a mais humilde classificação de suas fichas até suas mais altas ambições sintéticas não revelam, a cada vez, uma escolha de tempo, um ato de temporalização? – que é difícil de ser clarificada. Muito rapidamente, mostra-se, aqui, que nada permanece por muito tempo na serena luz das evidências”. Didi-Huberman, trata-se, “principalmente, de estender, sobre a questão do tempo, uma hipótese já levantada e argumentada sobre a questão do sentido: se a história das imagens é uma história de objetos sobredeterminados, é preciso então aceitar – mas toda questão está em até onde?, como? – que um saber sobreinterpretativo corresponde a esses objetos sobredeterminados. A vertente temporal dessa hipótese poderia ser formulada da seguinte maneira: a história das imagens é uma história dos objetos temporalmente impuros, complexos, sobredeterminados. É, então, uma história dos objetos policrônicos, de objetos heterocrônicos ou anacrônicos. Isso já não é dizer que a história da arte é ela mesma uma disciplina anacrônica, para o pior, mas, também, para o melhor?”.
Didi-Huberman é autor de dezenas de livros fundamentais, entre eles, publicados no Brasil, O que vemos, o que nos olha (Editora 34, 1998) e A imagem sobrevivente (Contraponto, 2013).
Segundo Izabela Leal, em artigo publicado nos Cadernos Benjaminianos, há duas atitudes distintas diante do objeto artístico, reconhecidas por Didi-Huberman – na análise em questão sobretudo em O que vemos, o que nos olha –, a saber, de crença e tautologia: “Ao sair do impasse entre crença e tautologia, Didi-Huberman formula, a partir de Benjamin, o conceito de imagem crítica, que é o desdobramento da imagem em pensamento e memória, implicando a sua dimensão de temporalidade”. Leal vê, “na passagem do conceito de imagem dialética, em Benjamin, ao conceito de imagem crítica, em Didi-Huberman”, uma operação de “fusão entre os conceitos de aura e rastro. O caráter aurático da imagem, para Didi-Huberman, é o que nos convoca nesse movimento de mão dupla entre olhar e ser olhado pelo objeto, como se a imagem produzisse uma exigência de sentido, como se demandasse do olhante uma espécie de trabalho”.
Em Diante da imagem, Didi-Huberman vale-se da aproximação, em francês, dos verbos voir (ver) e savoir (saber), sugerindo uma extensão análoga às imagens, em relação às quais o olhar nunca é neutro ou desinteressado. Diante delas, unimos, ao visível, palavras, modelos de conhecimento e categorias de pensamento. A questão que o crítico coloca é: de onde vêm esses modelos e categorias? Essa interrogação, uma espécie de arqueologia crítica da história da arte, é fio condutor da análise, que embate-se com proposições teóricas de Giorgio Vasari e Erwin Panofsky.
Recorrendo a Freud e seu conceito de Traumarbeit, trabalho do sonho, Didi-Huberman reconsidera os fundamentos dessa disciplina e nos convida a desconfiar do tom de certeza que, em diferentes registros, permeia atualmente o discurso da história da arte – autorizado pela acuidade das ferramentas que hoje emprega, pela impressionante capacidade de erudição de seus profissionais, pela pretensão científica e pelo papel que desempenha no mercado da arte e nas instituições culturais.
Autor: Georges Didi-Huberman
Editora: 34
Preço: R$ 37,10 (360 págs.)