“Zé do Carmo não conciliava o sono. Cismava dentro da escuridão. Davam cambalhotas pela sua cabeça os mais desencontrados pensamentos. Lembrava-se de tempos longinquos, quando era bem jovem. Como tinha sido bom o seu tempo de barqueiro! Forte, peito largo, bom no remo e no varejão, batuta numa cúia de jacuba!”
Pium, romance de Eli Brasiliense (1915 – 1998), foi publicado pela primeira vez em 1949. Premiado com a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, é atualmente um livro pouco comentado. Sua relevância literária e histórica, contudo, desenha-se pela análise de seu papel na formação de uma literatura goiana regional. A obra, voltada aos problemas do garimpo, ao ambiente degradado de suas áreas, é considerado o primeiro verdadeiro romance surgido nas terras de Goiás. Segundo José Godoy Garcia – em Aprendiz de feiticeiros: estudos críticos [1997] – trata-se de “uma obra que pode ombrear-se com as melhores de muitos romancistas de renome (e estou me lembrando da obra de Zé Lins do Rego)”.
No interessante artigo “Entre pessoas e cristais há riquezas lexicais”, Rosemeire Silva, da Universidade de Goiás, analisa as expressões lexicalizadas em Pium. Segundo ela, Pium “tece histórias e estórias observadas, vividas e imaginadas na década de 40 por um escritor goiano que nasceu em Porto Nacional, cidade que na época pertencia ao estado de Goiás e que atualmente pertence ao estado do Tocantins”. Como sintetiza Silva, a obra “arquiva e resgata aspectos culturais, sócio-históricos e lexicais de um povo marcado por uma época de guerra, escassez, lutas, heranças culturais e descobertas de cristais. Pium, vilarejo que até 1988 pertencia às terras goianas, materializa as mazelas das personagens que fora esquecido até a descoberta dos cristais, fato que contribui com ambição sobre o lugar e principalmente sobre as minas. O romance seleto alude aspectos histórico, culturais, sociais, identitários e linguísticos, se fazendo palco para a apresentação de um rico acervo lexical”. Eis o motivo que justifica o romance como ponto privilegiado para a investigação das expressões lexicalizadas, “verificando se elas são dicionarizadas ou se os sentidos são construídos com base no contexto sócio-histórico da época. Neste contexto de mudanças em decorrência da guerra, luta por cristais, busca pela sobrevivência, a obra produz uma urdidura de lexias simples, compostas, complexas e textuais”.
O romance desenvolve-se em torno da personagem Ritinha, que reflete o meio em que vive. Filha única de uma família humilde, composta por mais apenas a mãe e o pai da moça, sá Zefa, que trabalhava em casa e fazia a roupa da família, e Zé do Carmo, garimpeiro.
A narrativa começa com o caminhão de Silvestre, que sobe a ladeira entre as cidades Peixe e Porto Nacional em direção a Anápolis. Silvestre, o motorista, havia dado carona para Domingos, viúvo sério, dono de uma loja em Pium. No caminho, a carona estende-se também ao Dr. Alcides, médico que recusara-se a prestar socorro à mulher de Domingos, que enfrentara dificuldades durante o trabalho de parto, motivo pelo qual faleceu. Durante a viagem as três personagens lembram-se de Pium. Domingos, sempre calado, apenas com gestos aprovava ou reprovava o que os outros diziam. Rosemeire Silva, em outro artigo, intitulado “Pium: sob a luneta espacial” e escrito em conjunto com Braz José Coelho, analisa: “O livro apresentou dois espaços: o móvel, caminhão, e o imóvel, espaço de trabalho, garimpo, as mazelas de Pium e da redondeza. Assim, afirma-se que a obra possui dois macroespaços: o móvel e o imóvel. À medida que o caminhão, representante do ambiente móvel, se locomove, e a região de Pium, o ambiente imóvel, aparecem na narrativa, ocorre um jogo de espaços interno e externo, móvel e imóvel. Outra dualidade entre o interno e externo abarcando outros espaços dicotômicos além do dentro e fora (Pium) do caminhão, acontece na casa de Zé do Carmo (interno) e a loja de Domingos (externo), isso em relação à personagem Ritinha. Nestas mesclas de espaços, a personagem Ritinha aparece em vários momentos da narrativa. Ela, como moça de família simples, que vivia com dificuldades, e seus familiares vestiam-se e andavam diferente das pessoas que habitavam ou trabalhavam em Pium. “Os homens que choviam por ali vestiam roupas diferentes das de Zé do Carmo e não andavam descalços, ela também andava descalça”. Ritinha foi crescendo e passou a admirar as roupas e acessórios que havia na loja de Domingos; mercadorias adquiridas na maioria das vezes por garimpeiros e prostitutas”. O deslumbramento gera um reconhecimento da loja como um espaço lúdico, símbolo de conforto, de sensualidade, de perda da ingenuidade sobre a verdadeira condição de sua família, espartana e moralmente rígida.
A própria questão espacial, no romance, desdobra problemas de identidade sexual, social, econômica e cultural. “Em sonho viu-se novamente na loja. O homem de sorriso sem-vergonha estava lá. Oferecera-lhe vários presentes e ela os aceitara satisfeita”. Para o pai, consciente de sua condição, não passavam de bugigangas de garimpeiros gastadores e prostitutas. “Zé do Carmo passeava os olhos pelas prateleiras, de modo significativo. – O que você vai comprar, Zé? – Uns metro de pano pra véia, uns caroço de feijão, umas pedrinhas de sal e uma moiadura de criozena. Os retaio quero coisa barata, seu Domingo, mais que não rasgue atoa…” A alteridade coloca-se da maneira maniqueísta, um retrato histórico social.
_____________
A antiga casa de Zé do Carmo ficava distante do garimpo. Era alta e bem feita, madeiramento grosso, fornido. Alta demais. A mais graúda que havia por ali e que abria um contraste forte com as outras palhoças. Certo dia alguém lhe perguntou por que fazia uma casa daquela altura, sem precisão nenhuma, e ele respondeu com simplicidade: – É porque acho qui o home qui vive em paz com sua consciença, não precisa dobrá o espinhaço pra entrá em casa. Entra mais é desimpenado, com a cabeça em pé!
_____________
Autor: Eli Brasiliense
Editora: Cultura Goiana
Preço mínimo: R$ 6,90 (162 págs.)
[disponível apenas em sebos]