Literatura

À mercê das águas do Paraguaçu

29 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“ – Andaraí é assim mesmo. Nunca passou disso. É uma terra rica de gente pobre”.

Cascalho, de Herberto Sales, foi publicado pela primeira vez há setenta anos, em 1944. Foi o primeiro romance – escrito aos seus 27 anos de idade – do escritor que, em 1977, seria eleito para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Romance regionalista nordestino, Cascalho imediatamente integrou o ciclo temático inaugurado por José Américo de Almeida e continuado por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

Centrado do tema da mineração diamantífera na região da Chapada Diamantina, mostra a vida nos garimpos e suas regras próprias: o coronelismo, a capangagem, a árdua exploração. Herberto Sales explora as implicações sociais, econômicas e morais, bem como as particularidades geográficas da então situação garimpeira baiana.

Segundo Carlos Heitor Cony, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, após sua publicação, a consagração de Cascalho, bem como de seu autor, seria imediata. O ciclo do romance regional ganhava novo espaço em nossa geografia literária. O cenário não era mais a Várzea do Paraíba, os engenhos e as bagaceiras de José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Tampouco era o litoral baiano, águas encantadas por sereias, o chão coberto pelos frutos cor de ouro do cacau, os territórios mágicos -mar e terra- que ganhariam o mundo na obra de Jorge Amado.

“Nem era a seca que afugentava homens e animais pelas caatingas, o flagelo que daria a Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz o ponto de partida para suas carreiras. Em “Cascalho”, a fortuna e a maldição estão no ventre da terra. A lenda dos diamantes, fartos e encontrados até nas moelas das galinhas, na prodigalidade dos aluviões ribeirinhos, atraíam homens e mulheres, velhos e crianças. Véspera da fortuna imprevista, a miséria permanente acampava no decadente burgo excluído da civilização, povoado de fantasmas sacrificados na dura moenda dos diamantes e carbonados. A releitura do primeiro livro de Herberto Sales dá a sensação de um anúncio de Guimarães Rosa com seu universo vocabular e sua técnica inovadora”.

De acordo com o crítico Alfredo Monte, em resenha, o romance é sociológico e político. Nas suas palavras: “Cascalho é um romance de coletividade, um estudo do meio. Percorrendo vários dramas e cenas individuais, é a comunidade de Andaraí, principalmente a banda dos garimpeiros menos favorecidos, e todos aqueles que se agregam às suas trajetórias, o dínamo do romance, bem como a sua forte evocação do preço pago pela natureza em função da contínua ação predatória e gananciosa do homem. Pois, como aconteceu em quase todos os nomes da época desse veio nordestino, Herberto Sales surpreende um ciclo econômico já em seu declínio”. Segundo Monte, “assim como Rachel de Queiroz em seus melhores momentos, Sales tem uma visão muito pragmática dos eventos e das relações sociais, e não se permite […] os proselitismos que enfraqueciam os romances de seu conterrâneo Jorge Amado, até mesmo nas suas melhores realizações”. Para o crítico, 70 anos após o lançamento original, ainda é para o leitor do século XXI uma  vívida experiência de leitura (o que talvez explique por que alguém nascido em Andaraí se tornou um escritor tão maníaco) essa recriação naturalista de um pedaço do mundo, ou tranche de vie, como se queira, onde a expectativa do diamante perpassa toda uma sociedade, de forma que até os já aquinhoados de posses e riquezas são literalmente possuídos pela ideia de descoberta de alguma pedra de valor. Uma forma de igualdade entre os homens patética e dolorosa. O naturalismo indo ao encontro do teatro do absurdo”.

Para Vanessa França de Jesus, em artigo, o romance de Herberto Sales inaugura “o ciclo temático cotidiano”, expondo as relações de poder e a exploração e submissão do homem do garimpo pelo coronelismo, apresentando personagens arquetípicos daquele contexto, como os capangas ou as “mulheres-damas” e ilustrando o papel do Rio Paraguaçu, a contingência da vida à mercê da força de suas águas. Segundo França de Jesus, Sales constrói literariamente a “identidade do homem do garimpo, a sede de riqueza que habitava nos homens e a relação de dependência e extorsão num ciclo vicioso vivido por vários sujeitos em várias gerações”. Ela conta: “O romance já se inicia com uma cena comum naquela região. Um homem morto é trazido pelos companheiros depois de mais um dia de trabalho pesado nas lavras. Choveu muito e nas cabeceiras do Rio Paraguaçu tudo se inundou, aconteceu tão rápido a tromba d’água que os homens foram pegos de surpresa e o infeliz que estava sendo carregado não conseguiu salvar-se. […] Todas as personagens no livro inclusive o coronel tinham plena consciência de que a única força nas lavras que poderia derrotá-los era o Rio Paraguaçu, tão rico e tão traiçoeiro. Detentor de toda a riqueza cobiçada pelos homens e também detentor de suas vidas”.

Maria de Lourdes Utsch Moreira, na resenha que escreveu sobre o livro, define a visão de Herberto Sales como “neorrealista”. Segundo ela, o autor não realiza uma cópia, mas o reflexo do real. Andaraí seria uma lembrança na memória do autor que junto à imaginação transfigura e recria uma nova Andaraí. Seus moradores são personagens consistentes e verossímeis: os coronéis, donos das lavras, o médico velho e doente, o vigário, o turco de mil negócios, o farmacêutico, o juiz de direito, o delegado, a polícia, os jagunços, as parteiras, as benzedeiras, os comerciantes, a arraia miúda, cheia de carência, forasteiros, as mulheres damas com fortes ligações com os garimpeiros. As relações entre as pessoas alimentam a trama. O fulcro do relacionamento é a situação conflituosa entre os garimpeiros (explorados) e os patrões (exploradores). É um livro duro, onde não há lugar para a complacência”.

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Trecho:

Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como um bicho – sem vela nem sentinela – e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção. Por mal dos pecados, sua candeia apagara-se: mais pelo instinto que por outra coisa, avançava através da escuridão do lapeiro. Evidentemente, os outros gruneiros tinham fugido com muita rapidez ao ser dado o alarma, pois, do contrário, também estariam lutando ali para não morrer: isso lhe parecia de certo modo injusto. Enterra os pés na areia, para dar impulso ao corpo. Tem vontade de gritar, mas não o faz, por considerar essa ideia totalmente inútil: no bojo da gruna outra coisa não se ouve que não seja o rumor da água“.

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CASCALHO

Autor: Herberto Sales
Editora: E Realizações
Preço: R$ 45,00 (320 págs.)

 

 

 

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