Minha vida sem banho, de Bernardo Ajzenberg, lançado no mês passado pela Rocco, vem de um jeito inusitado de encontro às discussões, ultimamente tão frequentes, sobre a escassez de água e seu uso radicalmente racionado.
Seu protagonista, Célio, num dia de inverno acovarda-se frente a um banho frio, pois seu aquecedor quebrara, e resolve não tomar banho. Nem naquele dia, tampouco nos seguintes. A decisão de parar de tomar banho deu início a um verdadeiro projeto de vida. Que, paradoxalmente, reverteu-se na repentina aceitação social do protagonista, a partir de então, notado e respeitado. O autor constrói assim, com humor, uma crítica à superficialidade das relações e utopias contemporâneas, além de mostrar a canibalização da comunicação que é realizada através das redes sociais.
O romance, que tem a cidade de São Paulo como pano de fundo, é estruturado sobre imbricações de linhas distintas, pondo em questão a fragmentação familiar, a hipocrisia social, crises emocionais e existenciais, as relações afetivas problemáticas, a solidão, as raízes judaicas, os resquícios traumáticos de uma geração que cresceu sob a ditadura militar brasileira. O extenso leque de personagens coloca-se a serviço quer da história principal, quer das várias histórias que surgem umas dentro de outras. Em meio a eles, o protagonista Célio, um funcionário de um instituto de cunho ambientalista, que, de uma hora para outra, tomado pelo mero enfado, resolve adotar a drástica atitude ambientalista tão pouco higiênica que dá nome ao romance.
Em entrevista, ele analisa que “essa história expõe, entre outras coisas, uma das mais tristes mazelas contemporâneas: a valorização tão súbita e excessiva quanto superficial e passageira daquilo que é estranho, supostamente subversivo, escandaloso, mas que, no fundo, aponta para os mesmos impasses vividos pela sociedade desde muitas décadas atrás”. E acordo com Ajzenberg, “sob a ponta do iceberg da hipercomunicação gerada pelas chamadas redes sociais vai-se formando uma camada subterrânea crescente de imediatismo barato, banalização dos afetos, padronização dos sentimentos, canibalização da comunicação real e profunda. A consequência desse conjunto são laços fluidos e solidão. Falamos com todo mundo e com ninguém ao mesmo tempo. Temos cada vez menos gente realmente próxima de nós”. Pensando o banho como metafórico, ainda na mesma entrevista, o autor pontua: “A decisão de parar de tomar banho – com todas as consequências individuais e sociais que isso provoca – reflete, em Célio, uma necessidade profunda de autonomia, de poder escolher seus próprios caminhos ou ao menos batalhar para isso. Ele quer ser um indivíduo, pleno, e não, como se diz, “um número na multidão”. Talvez seja esse o “banho” de que precisamos: a retomada daquilo que nos é próprio e único sem que isso seja algo incompatível com a socialização”.
Segundo José Castello, em resenha publicada no jornal O Globo: “Engolfados pelo ritmo alucinante do novo milênio, já não nos sobra tempo para os projetos individuais. Não conseguimos mais afirmar posição – que ainda nos pertence – de Sujeitos, e não de Objetos. Estamos presos a uma armadilha tautológica, resumida na epígrafe que Ajzenberg toma de empréstimo do escritor húngaro Imre Kertész: “Por que me sinto tão perdido? Obviamente porque estou perdido. Em busca de um fio de sentido a que possa se apegar, Célio, motivado por um curto-circuito na resistência do boiler de sua casa, que em pleno inverno o condena aos banhos frios, toma uma inusitada decisão: viver uma “vida sem banho”. O desprezo pela higiene pessoal provoca um corte abrupto em sua rotina. A decisão se transforma em um ralo, pelo qual escorrem todos os antigos vícios e automatismos, obrigando-o a se reinventar. Uma simples peça deslocada de seu lugar habitual leva todo o edifício existencial a desmanchar-se. Somos frágeis e desprotegidos. Qualquer mínima alteração de expectativas nos sacode e arrasta”.
Para Manoel da Costa Pinho, conforme analisou em resenha escrita ao jornal Folha de São Paulo, apesar do interesse que desperta o enredo inusitado, “o livro de Ajzenberg não fica restrito a esse fio narrativo bizarro, cujo protagonista é uma espécie de cruzamento entre o personagem dos quadrinhos Cascão e Bartleby, criação do escritor americano Herman Melville, que vive imerso no imobilismo monomaníaco”. Para o crítico, “se o Projeto de Célio (sua militância antibanho) é uma caricatura tanto da Causa ecológica quanto da Organização em prol da Revolução – sempre em maiúsculas, como convém à magia retórica das seitas –, o destino de seus pais, que agonizam no tempo presente da narrativa, abre a cortina de uma sujeira que coloca em xeque a própria paternidade do protagonista. Contra essas impurezas ideológicas e afetivas – e tendo como pano de fundo o sentimento de culpa judaico e a obsessão do pai de Célio pelo Holocausto como “fuga do presente” –, o livro de Ajzenberg faz da falta de banho uma recusa tragicômica das ilusões de purificação”.
A Rocco disponibiliza um trecho para leitura.
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“Provavelmente um curto-circuito fez queimar a resistência do boiler da casa. Até me despi, mas no trajeto entre o quarto e o banheiro mudei de ideia: o simples pensamento de entrar debaixo do chuveiro gelado no inverno me causou arrepio; então, desisti. Nem estava suado – ao contrário, a noite fora fria. Ativei o olfato para verificar a situação do corpo e concluí que podia, sim, dispensar o banho naquele começo de manhã”.
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Autor: Bernardo Ajzenberg
Editora: Rocco
Preço: R$ 24,50 (192 págs.)