O erotismo, de Georges Bataille, ensaio publicado originalmente em 1957, articula filosofia, história da arte, antropologia e psicanálise, refletindo sobre a ontologia que encerram as noções de o erotismo, morte e sagrado, bem como suas imbricações. O erotismo representa, para Bataille, a substituição de uma continuidade, análoga à da morte, à descontinuidade natural do eu.
O livro foi reeditado no Brasil no ano passado pela editora Autêntica, com tradução e apresentação de Fernando Scheibe. A edição traz ainda um “Dossiê O erotismo”, que reúne escritos de Bataille sobre o tema, e a transcrição de um debate, ocorrido em 1957 em seguida a uma conferência proferida por Bataille, intitulada O erotismo e a fascinação pela morte, no qual o escritor embateu-se com André Breton, André Masson, Hans Bellmer e Jean Wahl, que, discordando de algumas de suas ideias, o acusaram, entre outros, de machismo.
O livro é dividido em duas partes: uma, analisa alguns diferentes aspectos da vida humana sob o ponto de vista do erotismo; a outra, apresenta estudos sobre o erotismo, que vão da psicanálise à literatura. O volume tem prefácio de Raúl Antelo e conta ainda com um estudo de Eliane Robert Moraes, dois dos maiores conhecedores da obra de Bataille no Brasil.
O tradutor elucida que, “Para Bataille, o ser humano é um ser descontínuo. Nasce só. Morre só. O paradoxo é que se, por um lado, queremos sempre conservar essa descontinuidade (tememos a morte), por outro, sentimos falta da continuidade perdida ao nos percebermos como ‘indivíduos’ (desejamos a morte). O erotismo é a dança, propriamente humana, que se dá entre esses dois polos, o do interdito e o da transgressão. O interdito, a proibição, o mundo do trabalho, da identidade, da conservação, da descontinuidade, torna o homem humano. Mas também faz dele uma coisa. A transgressão do humano é o ápice do humano. O erotismo é a experiência interior dessa transgressão, desse ápice: ‘A experiência interior do homem é dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não a resistência oposta de fora’”.
Segundo Gilson Iannini, coordenador da “Coleção Filô”, selo editorial da editora Autêntica sob o qual o ensaio foi publicado, “O erotismo é um livro de filosofia, mas também de literatura, de antropologia social, de teoria da religião. Talvez seja um livro sobre a economia política do gozo. Um livro que marcou toda uma geração: não apenas nomes como Foucault, Barthes ou Lacan, mas cada leitor anônimo, de todos os sexos e credos. Um livro único, erótico, que suprime limites, que funde limites: entre o livro e o leitor, entre a geração que se deixou marcar por ele e a geração que hoje poderá reaprender o erotismo em sua radicalidade. Porque vivemos em mundo que precisa de erotismo. De mais erotismo e não de menos. No sentido que lhe empresta Bataille, em sua inutilidade soberana”.
Conforme analisa o escritor e psicanalista Wesley Peres, em artigo publicado na Revista Cult, no ensaio “o pensamento inclui as paixões e outras potências incendiárias da carne. Logo no princípio, o leitor compreenderá que o erotismo em questão engloba numa só bocada a dualidade pulsional freudiana: pulsão de vida (eros) e pulsão de morte (tânatos): “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. Segundo Peres, a “aposta na imanência é radical, o ser começa quando começa o corpo, entendido como instaurador do abismo que separa um homem de outro homem, o que nos condena a uma solidão absoluta cujo império cessa apenas com princípio de outro, o império da morte: “Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros algum interesse, mas ele é o único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um ser e outro, há um abismo”. Esse abismo receberá o nome de descontinuidade – os termos descontinuidade e continuidade são as chaves para compreensão daquilo que o erotismo põe em jogo”. Peres demonstra que a nudez é a primeira realização de quebra da descontinuidade; em suas palavras: “a nudez faz com que os corpos se abram “à continuidade através dos canais secretos que nos dão o sentimento de obscenidade”. A obscenidade equivale ao erotismo que perturba e desordena a “posse da individualidade duradoura e afirmada”. O império da descontinuidade, da solidão abismal que separa um indivíduo do outro, é abalado pelo movimento erótico. Chegamos, então, ao grande paradoxo do espírito humano. Tal paradoxo consiste no seguinte: sofremos a solidão abismal da descontinuidade implicada no fato de sermos vivos, no entanto, ansiamos a imortalidade, equivalente da prorrogação infinita dessa mesma descontinuidade que nos angustia e nos abisma”.
De acordo com o crítico Karl Erik Schøllhammer, conforme analisa em resenha publicada pelo jornal O Globo, “em O erotismo, o fundamento civilizatório é analisado na experiência interior da proibição diante da violência que suspende a natureza do homem. Entretanto, trata-se de uma suspensão dialética, pois preserva a natureza no homem e, condicionada pela sociedade, se expressa subjetivamente em angústia e êxtase. Bataille interpreta a angústia existencial como a experiência interior da ameaça de se perder na continuidade da natureza. O êxtase, por sua vez, vem com a transgressão da fronteira e na experiência momentânea da união impossível com a continuidade na “pequena morte” do sujeito”.
De acordo com Foucault: “A morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride […]. E se fosse necessário dar, em oposição à sexualidade, um sentido preciso ao erotismo, este seria, sem dúvida, o de uma experiência da sexualidade que liga por si mesma a ultrapassagem do limite à morte de Deus”.
A editora disponibiliza trecho pata visualização.
Autor: Georges Bataille
Editora: Autêntica
Preço: R$ 59,00 (344 págs.)