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O problema está em saber quem é que manda.

21 novembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Martin Parr

Gilberto Dupas identificou O mito do progresso: constantemente renovado por um aparato ideológico capaz de fundamentar a ideia de que a história teria um destino certo e glorioso; o cientista social, neste ensaio, analisa a quem o progresso serve e quais são seus riscos e custos de ordem social, ambiental e em termos de sobrevivência da espécie. Dupas busca, assim, levantar elementos que desconstruam o discurso hegemônico sobre a globalização associada à ideia de progresso necessário. Seu texto aponta os problemas deste progresso, mostra-o como discurso dominante das elites globais, que traz consigo exclusão, concentração de renda, subdesenvolvimento, danos ambientais, restrição dos direitos humanos essenciais, riscos decorrentes da microbiologia e da genética, bem como graves dilemas éticos e morais. O tão falado “progresso” é um mito. Uma construção ideológica, que valida interesses econômicos e políticos restritos.

Lançado originalmente em 2006, o livro acaba de ser republicado pela Editora Unesp.

De acordo com Dupas: “Entre as vertentes críticas dentro do próprio pensamento marxista, a mais original, quando se trata de reflexão sobre o conceito de progresso, são as teses de Walter Benjamin em Sobre o conceito de história. Revisitadas neste início de século XXI, essas teses de Benjamin podem parecer revelar um pensador totalmente utópico. Mas ele estava muito menos preocupado com o “princípio da esperança” do que com a necessidade urgente de organizar o pessimismo; menos interessado no “amanhã que canta” do que nos perigos iminentes que ameaçam a humanidade. A contribuição fundamental de Benjamin ao sentido da história é fugir da celebração das rotas históricas de mão única escritas pelos vencedores e da inevitabilidade da vitória dos que triunfaram, assumindo a constatação essencial de que cada presente abre uma multiplicidade de futuros possíveis. Muita coisa é evitável, como teria sido a eventual decisão de não fabricar a bomba nuclear, apesar de dominar o ciclo atômico completo. Ou, pelo menos, de não lançá-la sobre Hiroshima e Nagasaki. A profunda mensagem de esperança de Benjamin é que o futuro pode reabrir os dossiês históricos fechados, reabilitar vítimas caluniadas, reatualizar aspirações vencidas, redescobrir bons combates esquecidos, ou considerados utópicos e anacrônicos, especialmente por estarem contra o discurso hegemônico de progresso”.

Outro filósofo citado pelo cientista social é Habermas, cujo texto La technique et la science comme “idéologie“, publicado em 1968, mostra que, segundo Dupas, o “modo de produção capitalista exige permanentemente a renovação das técnicas para operar o seu conceito motor schumpeteriano de destruição criativa: ou seja, produtos novos a serem promovidos como objetos de desejo, sucateando cada vez mais rapidamente produtos anteriores e mantendo a lógica de acumulação em curso. A racionalização crescente da sociedade estaria, assim, ligada à institucionalização da evolução científica e técnica. Nas sociedades capitalistas industrialmente desenvolvidas, a dominação tendeu a perder sua característica de exploração e de repressão para cobrir-se com o manto da racionalidade. O crescimento das forças produtivas veio acoplado ao progresso científico e técnico, associado ao crescente domínio da natureza e da produtividade, que asseguraram aos indivíduos condições de existência sempre mais confortáveis a partir da Idade de Ouro do capitalismo. Nesse universo da tecnologia, a falta de liberdade se apresentava sob a forma de uma submissão à aparelhagem técnica, que dá mais conforto à existência e aumenta a produtividade do trabalho. Assim, a racionalidade tecnológica não poria em causa a legitimidade da dominação; ao contrário, ela a defende em um contexto de uma sociedade racionalmente totalitária. A legitimação do capitalismo já não emana da tradição cultural, mas é estabelecida sobre a base da divisão do trabalho social. A instituição do mercado como lugar de troca da força de trabalho promete a “justiça” da equivalência nas relações de troca. A partir daí, o poder político pode ser legitimado a partir de baixo. O modo de produção capitalista e a legitimação do quadro institucional estão diretamente ligados ao sistema social do trabalho, ou seja, cada um é livre para vender seu trabalho no mercado pelo melhor valor possível; ainda que a preços vis, como ocorre hoje com China e Índia, obrigando os outros países da periferia a depreciar ainda mais sua mão-de-obra. A legitimação econômica permite ao sistema de dominação adaptar-se às novas exigências de racionalidade. Para Habermas, isso exigiu uma despolitização da grande massa da população, com a opinião pública perdendo sua função política. Para tornar plausível diante das massas sua própria despolitização, surge a ideologia do progresso técnico, no qual ciência e técnica assumem o papel de garantidores da inevitável redenção”.

A lógica global que envolve o progresso mostra-se, portanto, uma questão filosófica, econômica, tecnológica, social: é preciso ressaltar-lhe as implicações éticas e políticas, que são encobertas por sua dimensão ilusória, ou seja, o ocultamento da pobreza, a dissimulação do comércio da saúde, a grave crise ambiental que o mito do avanço histórico oculta. O discurso do progresso é apropriado por interesses sectários das elites para a legitimação de seu acúmulo irrestrito de riquezas.

O autor, a partir da pontuação de valores éticos, discute as transformações do próprio conceito de progresso, retomando-o como compreendido nos séculos XVIII e XIX, reconstruindo as ideias que levaram à consolidação da busca do lucro como razão maior da felicidade. A partir disso, ele analisa a crise do socialismo real e do capitalismo global, verifica as contribuições da psicanálise e da escola de Frankfurt e discorre sobre concepções acerca do conhecimento científico

A análise do livro encaminha sua argumentação no sentido de mostrar que a ameaça mais grave à humanidade é o ataque ao meio ambiente e seus resultados catastróficos, como o aquecimento global. O único meio de reverter essa situação seria a discussão promovida pela sociedade em busca do aprimoramento da capacidade crítica do indivíduo e da soberania intelectual do cidadão.

Dupas conclui que, atualmente, “assistimos ao mundo urbano-industrial-eletrônico ser cada vez mais reencantado com as fantasias oníricas de “pertencimento” a redes, comunicação “plena” em tempo real, compactação digital “infinita” — de dados, som e imagem —, expansão cerebral com a implantação de chips e transformações genéticas à la carte; centenas de bilhões de dólares são gastos anualmente em propaganda global para transformar em objetos irresistíveis de desejo os novos aparatos ou serviços. A tentativa de compatibilização dos vetores tecnológicos decorrentes das opções do capital — visando ao seu máximo retorno — com as efetivas necessidades da civilização é um processo de avanços e retrocessos, de ganhos e perdas. Apesar de todo o encantamento das conquistas que se nos apresentam como possíveis para o novo século, as preocupações com as eventuais graves conseqüências das direções em marcha ainda estão em fase de gestação dialética. Se formos capazes de exercitar a crítica com a força e a autonomia necessárias, quem sabe os resultados possam ser animadores”.

Em artigo escrito em 2006, por ocasião do primeiro lançamento do livro, Dupas disse que seria “inócuo atribuir inocência à técnica, argumentando que o foguete que carrega o míssil nuclear é o mesmo que leva os satélites de comunicação. […] Mas, apesar de toda a magia das novas tecnologias transformadas pela propaganda em objetos de desejo, há imensas preocupações quanto à direção desses vetores, que não são escolhidos democraticamente pela sociedade mundial. Maurice Merleau-Ponty dizia que chamar de progresso nossa dura e penosa caminhada nada mais é que uma elaboração ideológica das elites. Assim como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos, esse progresso é apenas um mito renovado para nos iludir de que a História tem um destino certo e glorioso, que se construiria mais pela omissão embevecida das multidões do que pela vigorosa ação da sociedade respaldada pela crítica de seus intelectuais”.

 

O MITO DO PROGRESSO – OU O PROGRESSO COMO IDEOLOGIA

Autor: Gilberto Dupas
Editora: Unesp
Preço: R$ 33,60 (331 págs.)

 

 

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