Robert Walser nasceu em Biel, na Suíça, em 1878; foi encontrado morto, em 1956, na neve, em Herisau, pouco longe do instituto psiquiátrico que habitava havia vinte e três anos. Ao longo de sua vida, não obteve reconhecimento e, quando após sua morte, enfim passou a ser lido e admirado, o foi por autores como Kafka, Musil, Hesse, Canetti, Benjamin.
Walser, que escreveu poemas e quatro romances, conseguiu, também em suas prosas curtas, manifestar seu gênio. Este volume, Absolutamente nada e outros contos, reúne mais de quarenta minicontos, além de esquetes, solilóquios e improvisos escritos entre 1907 e 1929. Traduzidos por Sérgio Telleroli, estes textos apresentam um vasto panorama da prosa walseriana.
Versam sobre temas variados, como uma caminhada pelo campo, uma viagem de balão, um quarto alugado, calças compridas, um macaco num café, flores, Kleist ou Cézanne. Mesmo “absolutamente nada” pode lhes ser matéria-prima.
Walser é conhecido por uma prosa delicada e precisa. Segundo Walter Benjamin, “as figuras humanas de Robert Walser partilham sua nobreza infantil com as personagens dos contos de fadas”. Mesmo a prosa curta de Walser aumenta essa familiaridade com os contos de fadas, pois confere ao tempo em que a própria prosa se desenrola uma suspensão mágica, uma aparente consciência de infinitude; uma infinitude de breves finitudes. Nessa atmosfera rarefeita, o lúdico funciona como o ponto de parada certo de uma lucidez fugidia, metaforizando relações de poder ou simplesmente abstraindo a rudeza do inevitável destino das histórias, que não são de vidas felizes para sempre, pois fatalmente suas divagações serão substituídas, serão enfim trazidas à realidade, onde a sabedoria é vã e a virtude, inútil.
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Trecho:
Resposta a uma pergunta
O senhor me pergunta se eu teria alguma ideia a partir da qual esboçar-lhe uma espécie de esquete, uma peça de teatro, uma dança, pantomima ou outra coisa do gênero que pudesse utilizar, na qual pudesse se apoiar. Minha ideia é mais ou menos a seguinte: providencie máscaras, meia dúzia de narizes, testas, tufos de cabelo, sobrancelhas e vinte vozes. Se possível, vá a um pintor que seja também alfaiate, mande confeccionar uma série de fantasias e trate de adquirir algumas boas e sólidas peças de cenário, a fim de que, envolto em um casaco negro, o senhor possa descer uma escada ou olhar para fora por uma janela e soltar um urro, um urro breve, leonino, denso, pesado, de modo a fazer com que de fato acreditem que é uma alma que urra, um peito humano.
Peço-lhe que dedique muita atenção a esse grito, que lhe confira elegância, que o emita com pureza e correção; depois, então, no que me concerne, o senhor pode apanhar um tufo de cabelo e deitá-lo por terra “doucement”. Quando realizado de maneira graciosa, isso produz um efeito horripilante. Vão pensar que o senhor embruteceu de dor. Para obter um efeito trágico, é necessário recorrer tanto aos recursos mais à mão quanto aos meios mais remotos, o que lhe digo para que o senhor compreenda que será bom, agora, enfiar o dedo no nariz e cutucar a valer. Muitos espectadores cairão no choro ao ver uma figura nobre e sombria comportando-se de modo tão grosseiro e lastimável. Tudo dependerá apenas da cara que o senhor fizer e de que lado o iluminarão. Dê uma bela estocada nas costelas de seu iluminador, para que ele se empenhe como deve e, acima de tudo, reúna expressão facial, movimentos das mãos, braços e pernas e boca.
Lembre-se do que eu lhe disse uma vez -e o senhor ainda há de se lembrar, espero-, ou seja, que, com um único olho, aberto ou fechado dessa ou daquela maneira, já é possível transmitir o efeito do temor, da beleza, do pesar, do amor ou do que seja que o senhor queira transmitir. Representar o amor demanda pouca coisa, mas, alguma vez nessa sua vida -Deus do céu!- absolutamente dilacerada, é necessário que o senhor tenha sentido pura e sinceramente o que é o amor e como ele aprecia se comportar. Assim é também, claro, com a ira, com o sentimento de inominável pesar, em suma, com cada sentimento humano. De passagem, aliás, aconselho o senhor a fazer frequentes exercícios de ginástica em seu quarto, a caminhar até a floresta, a fortalecer os pulmões, a praticar esportes, mas esportes seletos e comedidos, a ir ao circo e observar os modos do palhaço e, então, a refletir seriamente sobre com que movimento rápido do corpo o senhor poderá simbolizar melhor um espasmo da alma. O palco é a goela aberta e sensual da poesia; com suas pernas, meu caro senhor, estados de alma muito particulares podem ganhar expressão comovente, isso para nem falar no rosto e nas milhares de funções sugestivas que ele desempenha. Seus cabelos precisam prestar-lhe obediência, se, para simbolizar o pavor, eles hão de se levantar e horrorizar os espectadores, banqueiros e mercadores de especiarias.
O senhor, pois, nada terá dito até o momento; absorto em pensamentos, cutucou o nariz como uma criança mal-educada e sem consideração e agora vai começar a falar. Quando, porém, está prestes a fazê-lo, uma fogosa serpente esverdeada se arrasta sibilante para fora de sua boca retorcida de dor, ao que até o senhor parece tremer de pavor por todos os membros. A serpente cai no chão e se enrola no pacífico tufo de cabelos, um grito de medo ecoa por toda a sala, como se saído de uma única boca; o senhor, porém, já oferece algo de novo, enfia uma faca comprida e curva no olho, de tal forma que, jorrando sangue, a ponta da faca reapareça mais abaixo, no pescoço, próxima da garganta; em seguida, acende um cigarro e se mostra tão singularmente à vontade como se, em segredo, algo o divertisse. O sangue que lhe ensopa o corpo transforma-se em estrelas, e as estrelas dançam sedutoras por todo o palco, ardentes e enlouquecidas; o senhor, por sua vez, as apanha todas com a boca aberta, a fim de, uma a uma, fazê-las desaparecer. Com isso, sua arte teatral terá atingido grau considerável de perfeição. Aí, as casas pintadas do cenário começam a ruir qual bêbados medonhos e o sepultam. Vê-se apenas uma das suas mãos erguer-se de debaixo dos escombros fumegantes. A mão ainda se mexe um pouco e, então, o pano cai.
[Este conto, de 1907, foi divulgado pelo caderno Ilustríssima no jornal Folha de São Paulo]
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ABSOLUTAMENTE NADA E OUTRAS HISTÓRIAS
Autor: Robert Walser
Editora: 34
Preço: R$ 27,30 (168 págs.)